terça-feira, 15 de setembro de 2009

Samba, MPB - decadencia e brasilidade

O texto cita o samba nas discussões desde os anos 30 sobre a decadencia da musica popular no Brasil. Otimo texto e explanação rápida da historia da musica popular no Brasil. As fotos são capas de disco que achei melhor não copiar, pois bem conhecidas. Vamos lá - texto do professor Celso Branco:

A primeira pergunta, presente em duas composições da Rita Lee (foto) e do imortal Paulo Coelho (Arrombou a festa I e II), lançadas em 1977 (LP Refestança, Som Livre) e 1979 (LP Rita Lee, Som Livre), permanece até hoje sem a resposta que os orgulhosos da cultura brasileira gostariam de obter. Uma resposta para a percepção de contínua decadência da MPB no que se refere à qualidade das composições, dos intérpretes, arranjos e movimentos artísticos, a partir de um momento ainda não muito definido da sua história, mas muito evidente na comparação de estilos dominantes em cada período. Pelo menos é essa a sensação que permeia a análise de especialistas e leigos quando opinam sobre a história desse patrimônio cultural inegável, do qual, por outro lado, ainda muito nos orgulhamos por representar tão bem nossa própria contribuição à civilização. Mas essa sensação de decadência está realmente correta? A música do nosso país, respeitada e até cultuada lá fora, está mesmo em fim de carreira? O quanto dessa afirmação não esconde o conservadorismo saudosista, que faz parte também da nossa brasilidade, e que não admite transformações estruturais repentinas e nem o desvio dos temas considerados já “canônicos” da nossa música?
No final dos anos 1970, a época de sucessos como Bilú Tetéia, Sandra Rosa Madalena, Severina Xique-xique (de Jenival Lacerda, foto ao lado), e outras “pérolas”, como se dizia, do “brega”, a roqueira, manifestava com a sua pergunta a indignação de uma significativa parcela da opinião pública que ainda se lembrava dos Festivais da Canção dos anos 60, e que havia tomado como parâmetros de avaliação aquelas produções absolutamente datadas no passado recente de idealismos coletivos.
Mas, o fim dos 70 e início dos 80 estava por engendrar o fim desses idealismos, pelo menos nos formatos ainda propostos, e por assistir a derrocada de uma série de padrões artísticos, éticos e morais vigentes nas canções da época dos Festivais, por serem então incompatíveis com o novo momento. A “massa”, como comumente os especialistas se referiam ao gosto popular, estava a confirmar sua propensão a um estilo mais simples, mais chulo ou grosseiro, à linguagem direta não elaborada ou de duplo-sentido evidente na pornografia, mas que era também alegre, jocosa, provocadora, ou melhor, carnavalesca, tipicamente brasileira enfim, o que justificava em grande parte o sucesso dos “bregas” e do programa de TV do Chacrinha, o principal promotor desses grandes sucessos populares.
Contudo, sem reconhecer essa identidade, muitos críticos brasileiros dirigiram toda sua força no combate á “breguice”, até o ponto de quase nada mais sobrar em suas análises de verdadeiramente valoroso ou admirável em toda e qualquer nova produção musical brasileira.
Mas quando foi que isso começou?
Acredite se quiser.
Já em 1930, encontramos duras críticas à música popular brasileira e a descrição de um processo de decadência. Luciano Gallet (compositor, regente, folclorista e diretor da revista musical Weco), descontente com os rumos da música brasileira, promoveu neste ano uma campanha de “salvamento” da mesma, que culminou com a fundação da Associação Brasileira de Música. Este mesmo ano, paradoxalmente, será tomado mais tarde como marco do início de uma “época de ouro” da nossa música. Estes fatos nos dão uma amostra do quanto o sentimento de decadência desse patrimônio é antigo e ao mesmo tempo maleável e transitório entre nós.
Mas decadência em relação a que modelo? Conforme Arnaldo Contier, o grande estudioso da identidade nacional brasileira expressa na música popular, os primeiros impulsos para a produção historiográfica sobre a questão da música no Brasil, alimentou-se no seio do modernismo, sobretudo nas obras de Mário de Andrade e Renato de Almeida, ao longo dos anos 20 e 30, e cresceu com o debate sobre o problema da brasilidade, da identidade nacional e dos procedimentos pelos quais deveria ser pesquisada e incorporada a "fala do povo" (e do folclore) aos projetos ligados aos modernismos. Uma parte significativa desses projetos, depois de devidamente filtrados, chegaram mesmo a fazer parte dos planos do primeiro governo Vargas.
É neste momento de exagerados nacionalismos, de escala planetária, que irão se definir os parâmetros da música popular. Traços identificados na música desde finais do século XVIII, quando já podiam ser notadas "certas formas e constâncias brasileiras" no lundu, na modinha e na utilização generalizada da sincope, por exemplo, que já estavam devidamente captados ao paradigma que se queria impor, e ao qual não se encaixavam certas “invencionices” modernistas de última hora.
O que identificamos nessa propaganda da idéia de decadência é a série de mudanças que se operavam nos anos 30 em toda a sociedade brasileira e a resistência a elas de uma parcela da elite intelectual. Foi no início desta década que o samba sofreu as mudanças do padrão rítmico operados pela “turma do Estácio” (Bairro Estácio de Sá, Rio de Janeiro - Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Brancura e outros) e que foram tomadas como sinais da “decadência” iminente. Na verdade, esses mesmos sinais de decadência, ou seja, essa transformação iria marcar definitivamente a batida do samba moderno, formando uma nova escola de sambistas e compositores que nestes mesmos anos 30, tornou-se o modelo definitivo ou paradigma do samba “tradicional”.
Porém, nem perante essa inversão de julgamentos, as críticas que denunciavam a perda constante da qualidade musical iriam arrefecer.
Já em 1940, Carmem Miranda teve que se defender na volta ao Brasil da acusação de negar a brasilidade: “Disseram que eu voltei americanizada” (samba de Luiz Peixoto e Vicente Paiva).
E um ressurgimento vigoroso desse sentimento de decadência será verificado a partir da segunda metade da década de 50, quando a música popular foi tema constante na imprensa brasileira. Mais uma vez a idéia da decadência musical, corrente na historiografia da música brasileira deste período, remete de maneira simplista à idéia de crise. Numa época marcada pelo crescimento da indústria fonográfica e pela multiplicidade de ritmos que tomava conta das rádios, o samba deixava de ser hegemônico e dividia as paradas de sucesso das maiores emissoras de rádio do país com rumbas, jazz, boleros, fox e marchas de Carnaval. É nesse leque de produções estrangeiras ou “de influências estranhas” que muitos viram uma inequívoca decadência da arte musical nacional. Mas esse sentimento, mais uma vez, correspondia à realidade?
Apesar do envelhecimento ou morte de alguns dos ícones dos anos 30 e 40, como Francisco Alves e Carmem Miranda, em meados dos anos 50 muitos artistas de inegável qualidade faziam a sua aparição: Dolores Duran, Antônio Maria, Adoniran Barbosa, Jacob do Bandolim e Ângela Maria são apenas alguns exemplos; a produção voltada para a festa do Carnaval, para citar outros, teve em composições de Haroldo Lobo, Braguinha, Nássara, Wilson Batista e Zé da Zilda, entre tantos (o disco de 78 rpm ao lado, lançado em 1955, de Lamartine Babo, é um grande exemplo de sucesso de vendas), altíssima qualidade neste período; o frevo também obteve destaque, através de Severino Araújo e o baião se consagrava na voz de Luiz Gonzaga entre muitos outros artistas nordestinos; Cartola foi redescoberto por Sérgio Porto e retornou à vida artística; a turma da Velha Guarda, comandada por Pixinguinha, voltou a gravar e fazer shows; e havia lugar para manifestações musicais como o bigorrilho, cultivado por Jorge Veiga, para não falar da rica variedade de sambas, samba de morro, samba de roda, samba de breque, samba-canção, samba-enredo e os “sambas de última hora”, que vinham na boca do povo; a atuação de Almirante nos programas de rádio continuava com grande sucesso, divulgando todo esse rico universo. Mas, ao mesmo tempo, o rádio vinha também elegendo os ícones (o principal do período foi Noel Rosa) que serviriam para identificar os estrangeirismos “deturpadores” do samba e da nossa autenticidade, bem como a “qualidade” do que estava sendo produzido. Ao contrário do que pressupunha a tese dos críticos da música popular deste momento, o cenário musical era muito variado e criativo, sendo ainda o samba o gênero principal. Contudo, por sobre essa profusão pairou pesada, a nuvem dos julgamentos pessimistas que novamente condenavam á música brasileira á decadência.
E assim, apesar de todos os memoráveis acontecimentos ligados à música popular desta década, as opiniões insistentes sobre a decadência do samba acabaram consagrando os anos 50 como período de crise. Em 1954, surgia a Revista da Música Popular, criada por Pérsio de Morais e Lúcio Rangel, que, segundo os pesquisadores Marcos Napolitano e Maria Clara Wasserman, “tinha como projeto formar uma grande rede nacional para discutir e combater a crise na música brasileira e, a partir da conscientização popular, voltar às origens e retomar a tradição, que seria o samba “puro” dos anos 30”. Para a Revista, o samba tradicional estava sendo substituído por ritmos estrangeiros, tais como boleros, xá-xa-xás, tangos, rumbas e o jazz trazido pelas Big Bands. Um artigo escrito para a Revista pelo compositor Ary Barroso (tido como um dos maiores representantes da identidade musical brasileira, como atesta a capa do CD ao lado, numa coletânea lançada em 2000), deixa claro esse pensamento crítico de jornalistas e compositores a respeito do ambiente musical da época, e nos dá eloqüentes argumentos para acreditar na decadência:
1 – Antigamente não havia “gramáticas” em samba. E todos o entendiam.
2 – Antigamente não havia “acordes americanos”
3 – Antigamente não havia “boites”, nem “night clubs”, nem “black tie”. E o samba andava pelos cabarets, humilde e sem dinheiro.
4 – Antigamente não havia “fans-clubs”. Então os cantores cantavam sem barulho um samba sem barulho, vindo da Penha, único barulho era o preparatório para o grande barulho que era o Carnaval.
5 – Antigamente as orquestras não tinham a disciplina militar das bandas, porque eram bandas autênticas sem pretensão à orquestra. Então o samba saía sem pretensão, mas gostoso.
6 – Antigamente o “compositor” não era “compositor”; era um veículo sonoro de suas emoções. Então o samba saía à rua vestido de brasileiro, gingando com as “porta-estandartes” dos ranchos.
7 – Antigamente não havia parceria de cantores, empresários e “veículos” Então o cantor cantava: não impingia!
8 – Antigamente o teatro era palco dos triunfos populares. Então, o samba vinha da Praça Tiradentes para a cidade e depois para o Brasil.
9 – Antigamente samba era uma coisa, hoje é outra...
10 – Decadência! Decadência! Decadência.
Nos dez itens que Ary escreveu com o título de Decadência, o compositor apontava sem escrúpulos os criminosos: a influência americana, as marchas carnavalescas, os fãs clubes e programas de auditório, as orquestrações no samba e todo o procedimento da indústria fonográfica, que a cada dia, “fabricava” artistas e músicas sem qualquer compromisso com a tradição. Os articulistas da Revista argumentavam que depois de 1945 as rádios começaram a importar ritmos vindos da América Central e dos Estados Unidos (filmes musicais produzidos por Hollywood) e que assim, haviam encerrado a época de ouro, cedendo lugar para a fase do internacionalismo e da música comercial.
A tese da decadência não conseguia ver que a música brasileira se mantinha em plena atividade, de forma, aliás, cada vez mais penetrante em todo o território nacional. Além disso, não era verdade que o samba “tradicional” estava sendo substituído, pois ele ainda predominava com temas que caracterizavam o ambiente urbano carioca, como o cotidiano do trabalho e a malandragem. Talvez, outras transformações notáveis na capital do país, fossem mais diretamente responsáveis pela sensação de decadência do que os famigerados estrangeirismos. Alcir Lenharo, nos conta que o lugar da boêmia e do meio artístico carioca nos anos 30 e 40 sofreu uma trajetória descendente: em 1942 foram fechados prostíbulos e desapropriados prédios “velhos e insalubres” e em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra fechou os cassinos e proibiu o jogo no Brasil. Essas, entre outras interferências na aparência da cidade, como a alteração do bairro da Lapa, modificaram os redutos da malandragem característica dos anos 30, provocando na população em geral, uma sensação de decadência do próprio mundo do samba.
Vemos aí nada mais que o embate entre tradição e modernização, lida como decadência daquilo que representa o nacional.
A Revista da Música Popular representava naquele momento uma tentativa de resgate ou uma reinvenção da tradição (como nos ensina Hobsbawn) ao criar um projeto de restauração da música brasileira dos anos 30. Completamente articulado com esse projeto foi lançado em 1953 o álbum com três discos de 78 rpm de Araci de Almeida homenageando Noel Rosa (com capa de Di Cavalcanti, ao lado) e também o livro de Almirante, No Tempo de Noel Rosa. Desta forma, construía-se esse projeto com um panteão eleito pelo periódico, com um papel definido para a indústria cultural, com parâmetros para um juízo de valor criado e um nacionalismo musical desenvolvido tanto pelos folcloristas da música urbana, quanto pelos jornalistas, gerando assim, uma verdadeira escola que se mostrou forte a ponto de dominar julgamentos posteriores sobre a nossa música.
Um exemplo é o I Congresso Nacional do Samba, de 1962, organizado pela Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro, cuja intenção era a de preservar as características do samba sem tirar-lhe as perspectivas de modernidade e progresso. Na introdução do documento, redigido pelo folclorista Edison Carneiro, lê-se:
“Tivemos em mente assegurar ao samba o direito de continuar como expressão legítima do sentimento de nossa gente”.
Esta reação se devia a presença perturbadora da Bossa Nova, que a partir de 1959, com sua opção de renovação estética e modernização e que, ao mesmo tempo, reivindicava o seu lugar na tradição do samba, acabou por reacender o debate e torná-lo mais complexo. A Bossa Nova se tornaria uma febre mundial (na foto ao lado, a Beautiful Bossa Nova – conferindo uma imagem moderna para o país). Mas, muitos bons brasileiros não gostaram dessa nova cara para o Brasil. Um prefácio de Brasílio Itiberê, comentado na dissertação de mestrado de Enor Paiano. (O berimbau e o som universal. Lutas culturais e indústria fonográfica nos ano 60), demonstra quais eram os motivos das reações negativas que tiveram certos especialistas críticos, em alusão à turma da Bossa Nova: “privada de sua vivacidade rítmica, a melodia popular se amolentou, tornou-se invertebrada, perdendo caracteres raciais específicos”. Tratava-se de recolocar a "evolução" da tradição em consonância com o projeto de origem. Postura que terá em José Ramos Tinhorão, um baluarte das convicções conservadoras. Este crítico, que ocupa um lugar destacado na historiografia da música brasileira, não só pela importância da sua grande produção bibliográfica, como também pela sua verve polemista, ganhou fama (e desafetos) ao se pautar pela idéia de que a Bossa Nova representava o momento máximo da ruptura com as origens, logo, com a autenticidade, construindo verdadeiros manifestos contra a hegemonia da Bossa Nova e da "Moderna" MPB (hegemonia consolidada em torno dos programas de televisão), justamente num momento em que a Bossa Nova buscava nova inspiração no "morro" (como ocorreu com Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes) ou em Orlando Silva e nos sambistas antigos (como podemos notar nos álbuns de João Gilberto). Apesar desse esforço em desqualificar todo o movimento, não seria exagero afirmar que a Bossa Nova, em sentido contrário á essa condenação, é produto de exportação até hoje!
Toda a década de 60, tida hoje como um segundo período de grande importância para a nossa música em termos de qualidade e criatividade das produções, assistiu a permanência desta crítica, muito visível na rejeição, por parte de uma mesma intelectualidade, à Jovem-Guarda, ao movimento tropicalista, e á música brega, que iria inundar as gravadoras, tvs e rádios nos anos 70. No livro de Nelson Motta, Noites Tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, lançado no ano 2000, encontramos a confirmação dos preconceitos e juízos de valor enraizados e cristalizados pela idéia de decadência, em particular a contraposição entre a música popular brega e a música popular “culta”. Essa dualidade, segundo Nelson Motta, já estava bem representada desde os anos 60, através de dois programas de TV: o programa Jovem Guarda (comandado por Wanderléia, Erasmo e Roberto Carlos, na foto acima) e o programa O Fino da Bossa (apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, foto ao lado). O primeiro representava o público “alienado” e o segundo o público “politizado” - rixa entre artistas e programas que foi, segundo o autor, estimulada pela TV Record, interessada em se ver sintonizada com os interesses da indústria fonográfica. Para Nelson Motta, as expectativas e esperanças de retomada evolutiva da música brasileira se concentravam, nos anos 80, na ascensão do samba-reggae de Daniela Mercury e na produção “inspirada” de Marisa Monte. Neste embate que ele descreve, teria inequivocamente vencido o “mau gosto”, que passa então a dominar o mercado fonográfico - entre os exemplos, ganha destaque a “decadência da música sertaneja”. Mas como podemos entender um autor que define essa música como “pobre” e “vulgar” e que anuncia com orgulho a sua participação ativa na disseminação da discoteca no país, considerada por muitos, não menos “vulgar”? .
Na década de 70, o compositor Caetano Veloso, após ter sido literalmente rechaçado com “Proibido Proibir” no Festival de 1967 e muito pouco compreendido no programa da TV Globo, Tropicália, de 1968, invertera as expectativas, e no auge de sua carreira tornava-se um autêntico guru daquela geração. Mas na qualidade de mestre que agora lhe emprestavam, exigia-se também a sua condenação ao brega. Quando o compositor de “Qualquer Coisa” chamou ao palco o seu convidado, o cantor Odair José (junto a Caetano na foto abaixo de 1972), para participar do seu show, teve novamente que ouvir uma sonora vaia ensurdecendo o teatro, fruto da intolerância do público presente, que execrava o que parecia ser a antítese do próprio Caetano. Porém, sob um gesto de comando do guru, o público ficou em silêncio para ouvir a canção "Pare de Tomar da Pílula" do amigo constrangido. No fim, a platéia aplaudiu de pé. Quando sancionada por uma autoridade a qualidade do que antes era brega passa a ser imediatamente reconhecida. Isto nos mostra quão tênue é a linha divisória entre o que merece ou não ser cultuado nesse tipo de julgamento. Ao terminar a execução daquela música que ficou muito melhor na voz do compositor baiano, este proferiu um julgamento que ia de encontro ao preconceito evidenciado, invertendo totalmente a sua polaridade: “Nada mais Z do que um público classe A”.
Nada, porém, fez regredir a idéia de decadência. Ao contrário. A partir da época da composição da Rita Lee comentada no início e pelas décadas de 80 e 90 a dentro, essa sensação só aumentou em reações cada vez mais contundentes em relação aos novos movimentos musicais, à música sertaneja, à Lambada, ao Axé e ao Pagode, para não falar do Punk, do Funk, do Hip-Hop e do Rap entre outros movimentos mais isolados.
Quando a noção de decadência na música se articulou nestes anos com outras sensações semelhantes, o clima geral levaria o cantor e compositor Cazuza a gritar: “ideologia, eu quero uma pra viver!” e “Meus heróis morreram de overdose” (Álbum Ideologia, 1988 – foto da esquerda) e á relevante dúvida levantada por Renato Russo: “Que país é este”? (título do álbum de 1987 foto da direita). Ao mesmo tempo o lançamento da série de Song Books, pela editora Lumiar de Almir Chediak, novamente reforçava, na escolha dos artistas “homenageados”, o mesmo panteão consagrado a muito tempo pelos especialistas. Não foi a toa, a escolha de Noel Rosa para ser o primeiro da longa série (editada a partir de 1991). O panteão, assim como a noção de decadência já estava no consciente coletivo. Noção que, como vimos, sempre foi, e ainda é, uma constante na história da nossa música popular: ainda em novembro deste ano (2006), o tropicalista Tom Zé disse na TV Cultura que a MPB continuava sofrendo de diarréia. È realmente triste que perante os muitos talentos que lutam pelo reconhecimento, ainda hoje impere esse sentimento.
Numa coisa, contudo, os especialistas concordam: o que ocorre com a música popular não é por falta de talento. Aqui o talento é farto, em todos os ritmos, todos os estilos, todas as formas. Não há cidade brasileira, do Oiapoque ao Chuí, onde não encontremos talentosos músicos e compositores que provam que a sensação de decadência corresponde á uma sensação não totalmente correta. O jornalista e músico Luís Nassif, em seu livro "O Menino do São Benedito e Outras Crônicas" também discorda da sensação de decadência na MPB: "Penso que a música brasileira é a melhor do mundo. Eu e Michel Legrand, para quem a música da primeira metade do século 20 foi o jazz e a da segunda, a MPB. Hoje em dia se tem a mais talentosa geração de instrumentistas da história. (...) O grande elo fraco da cadeia produtiva musical é o fonográfico e radiofônico. A indústria musical é anacrônica, é explorada por amadores, incompetentes, e a indústria de rádio é um horror, com seu sistema de concessões e jabá. (...) Vivi como adolescente toda aquela fase dos anos 60 e sei que em termos de quantidade e qualidade a MPB é hoje no mínimo cinco vezes melhor do que era. A cobertura jornalística musical não deixa vir à tona tanta qualidade e quantidade: A cobertura de jornal está muito presa ao que é oferecido pela indústria cultural. (...) Acho que falta sair desse tripé de gravadora, rádio e TV, inverter o circuito, entrar nos guetos, montar uma comunicação com eles".
Além de todas essas questões levantadas por Nassif, devemos ainda acrescentar que as novas produções musicais, de qualidade reconhecida ou não, não retiraram das prateleiras, das estantes e dos palcos, as músicas populares de todas as épocas e estilos, que continuam a “fazer a cabeça” de gerações e gerações de novos ouvintes. Graças á essa verdadeira “resistência cultural”, na transmissão de discos de pais para filhos, estes acabam conhecendo e acompanhando o repertório imenso de boa qualidade, que pode não freqüentar a maioria das rádios, mas está cotidianamente presente nas casas de espetáculo, nos bares e lares brasileiros. É preciso lembrar também que os novos movimentos estão a ampliar e não a restringir o espaço criativo. O Rock é hoje um importante dispositivo de produção de subjetividade, e ao mesmo tempo pode ser visto como um dispositivo de coletivização, como possibilidade de superação da solidão e do isolamento que o sistema social produz. O fenômeno do Funk nos morros e subúrbios cariocas para além de um criticismo nacionalista estéril, que veria aí unicamente a decadência do samba, pode estar servindo à reconstituição de novos e importantes territórios existenciais.
Enfim, acredito que devemos evitar confundir o que a Mídia nos apresenta como representantes da nossa cultura com aquilo que o nosso povo realmente produz e consome. Não julguemos pela péssima qualidade dos produtos anunciados por essa mídia – aliás, esta sim decadente graças á produção pirata – toda a produção rica e diversificada que podemos encontrar a qualquer hora em todos os cantos do nosso país. A qualidade estará, via de regra, muito presente, desde que nos esforcemos para alcançar um pouco além daquilo que os meios mais imediatos nos oferecem, e que enxerguemos com um pouco mais de profundidade a arte que realmente fica pra história. Não meus amigos, a nossa música, a nossa arte, a nossa cultura não está decadente! E Deus ainda é brasileiro!

*Celso Branco
é mestrando do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC). Também atua como pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (TEMPO).
Ambas as instituições da UFRJ.
BIBLIOGRAFIA
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domingo, 12 de julho de 2009

Samba de fato


Texto/parte do livro do Spirito Santo que conheci virtualmente no site overmundo. Muito instingante e aguardo o livro com ansiedade


Este post é um trecho do livro, ainda no prelo, denominado 'O Samba e o Funk do Jorjão', cuja idéia central é esmiuçar e desconstruir alguns dos mitos, supostamente, criados em torno da história do Samba - enquanto uma espécie de síntese da cultura do negro brasileiro, em geral - mitos estes que, como ocorre com muitas outras ficções antropológicas montadas no Brasil, foram construídos por criativas comunidades de intelectuais, ao longo do tempo e com intenções, quase sempre, muito bem medidas. Embora tenham sido baseados, claramente, em premissas equivocadas, infundadas ou mesmo deliberadamente falsas, infelizmente, estes mitos foram se cristalizando até se tornarem verdades absolutas, oficiais, por força de sua insistente reiteração (principalmente por certas vias acadêmicas). Ao que parece, na maioria dos casos, a principal função destas mistificações, é dar sustentação a certos paradigmas da excludente sociedade brasileira, entre os quais aquele que tenta estabelecer – sempre sem afirmar - a existência de uma espécie de hierarquia cultural (ou mesmo intelectual), entre as raças ou classes no Brasil, que daria alguma legitimidade a desigualdade social predominante. Dentre estes eletrizantes mitos, o mais curioso talvez seja o do 'Berço do Samba', que parece tentar comprovar - na verdade, de forma extremamente sutil - a velha tese racista de Nina Rodrigues sobre uma improvável supremacia dos negros bahianos ('sudaneses' supostamente maioria étnica na Bahia) sobre os demais (negros 'Bantu', vindos de Angola para as fazendas de café do Vale do Rio Paraíba do Sul, certamente, maioria étnica no Rio de Janeiro desde, pelo menos, o início do século 19). Entre outras fontes, recorri para esta parte do trabalho, aos escritos (em notas assinaladas) de Nei Lopes – que gentilmente assina o prefácio do livro - além de Muniz Sodré e Sérgio Cabral, o pai, especialistas que dispensam quaisquer comentários)

Com vocês então:

O Mito do 'berço do Samba

--------------------------------Não deu no jornal:

O dia em que um Samba foi cantado na Mangueira...pela primeira vez ...'Quem cantou foi Eloy Anthero Dias, o ‘Mano Eloy’, um personagem legendário do samba carioca. Morador de Madureira, na época, Mano Elói viria a fundar mais tarde pelo menos três escolas de samba (Prazer da Serrinha, Deixa Malhar e Império Serrano). Foi ainda, segundo dizem, um respeitado pai-de-santo e, durante muitos anos, destacou-se como líder sindical dos estivadores do cais do porto. '...Mano Eloy cantou primeiramente na casa de Tia Fé e depois para os integrantes do Pérolas do Egito. Era um samba do tipo partido alto em que se repetia o refrão e improvisavam-se versos. O refrão dizia apenas o seguinte: ‘O padre diz Miseré Misereré nobis’. Em seguida, vinham as quadras improvisadas, quase sempre relacionadas com as circunstâncias em que o samba era cantado, Carlos Cachaça lembrou-se que, numa delas, Mano Elói brincava com a dona da casa, inventando versos como "amanhã vou na casa de Tia Fé", rimando com "vou tomar 'café' '.O Samba de Partido Alto cantado por Eloy, principalmente pelo fato de usar uma rima com ‘café’, poderia ter algum remoto parentesco com o famoso ‘Batuque na Cozinha’ que, por sua vez, já havia sido um conhecido Lundu de letra africana, meio cabalística, bastante famoso na Corte Imperial como ‘Lundu do Pai Zuzé’ (este sim, matriz evidente do famoso e posterior ‘Batuque na Cozinha’ (assinado por João da Bahiana).

Lundu do Pai Zusé (domínio público - século 19)

‘Batuque na cozinha ,

Sinhá num qué

Pru causa da crioula

do Pai Zusé

Auê, Zambi...Zique...pá ,

Zique...pá ,

Zique...pá , Zique...pá ...

_ Cadê pirigurê? (caxinguelê)...

'Batuque na Cozinha (João da Bahiana, século 20)

'Batuque na cozinha a Sinhá num qué

Por causa do batuque eu queimei meu pé....

Eu fui na cozinha pra pegá cebola

E o branco com ciúme de uma tal crioula

Deixei a cebola, peguei na batata

E o branco com ciúme de uma tal mulata...'


--------------------------Existem muitos outros aspectos curiosos, instigantes mesmo, naquela primeira audição de Samba na casa da bahiana Tia Fé, na Mangueira dos idos de 1910, protagonizada, pelo ilustre visitante Eloy Anthero Dias, um encantado Carlos Cachaça, e o pessoal do rancho ‘Pérolas do Egito’, muitos deles talvez futuros integrantes do ‘bloco dos Arengueiros’, segundo consta, o núcleo formador da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Embora eles sejam considerados hoje em dia fatos consumados e estabelecidos, que tal dar uma olhada neles, sob outro ponto de vista? Para começo de conversa, há na crônica sobre as origens do Samba, um inexplicável exagero na hora de se falar desta impressionante figura que foi Eloy Anthero Dias, o Mano Eloy. O que se vê invariavelmente legendado em sua história, na época em que cantou pela primeira vez um Samba na Mangueira, é a sugestão de que ele era um ‘bamba, exímio sambista, jongueiro, pai de santo e macumbeiro’, cheio de super poderes, um verdadeiro ‘Superman’ negro. Ocorre que este surpreendente Mano Eloy (com certeza um nome que merece mais notoriedade do que lhe dão os especialistas em Samba), pelos dados até agora disponíveis, devia estar, no máximo, com 22 anos na ocasião descrita por Carlos Cachaça (que seria mais novo ainda que Eloy). '

...Há 30 anos que Eloy Anthero Dias (agora aos 43 anos) ...faz parte do Samba- essa dança que encanta e embala. Durante este tempo, inúmeros sambas fez ele, inclusive ‘Miserê’, ‘Não vou lá no candomblé,’ ‘Moro na roça’, e ‘B com A’, estes tiveram retumbante sucesso' . (Trecho de biografia de Eloy publicada pelo jornal ‘A Rua’, na ocasião em que foi eleito o primeiro cidadão Samba do carnaval carioca, em 1936)Estando há cerca de sete anos no Rio de Janeiro e havendo ingressado no chamado mundo do Samba com cerca de 18 (portanto há apenas quatro anos antes desta sua ida à Mangueira), Eloy devia ser aquela altura, astuto sim, despachado, descolado; um jovem prodígio até mas, experiente com certeza ele não poderia ser. Não havia bagagem de vida, cabedal. Havia muito chão ainda para o futuro ‘bamba’ percorrer. '... Sambista nascido em Engenheiro Passos, no estado do Rio de Janeiro em 1888 e falecido em 1971, na cidade do Rio – para onde viera com 15 anos de idade- (...) Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro de cânticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. Seu companheiro nessa empreitada foi o já referido Amor. O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos pontos de macumba, com atabaques e tudo o mais'. O fato é que, por alguma estranha razão, ligada talvez ao inusitado da situação (quem sabe talvez o fato de ter sido um desconhecido ‘estrangeiro’ de Oswaldo Cruz, o verdadeiro introdutor do Samba, no tradicionalíssimo reduto da ‘Estação Primeira’), nossos estudiosos acabaram deixando sugeridas na biografia de um Eloy ainda mal saído da adolescência, qualidades que ele evidentemente só iria ter muitos anos depois.

A precocidade de Eloy (a quem também Nei Lopes, de certo modo, atribui a introdução do samba na Mangueira, sob a forma de rodas de Batucada e de Pernada) e de outros grandes mestres do Samba, era bastante comum naquela época, quando os conceitos adolescência ou juventude eram um tanto diferentes do que são nos dias de hoje. Mesmo neste caso há de se convir, no entanto que, se referindo àquela ocasião, os dotes posteriormente atribuídos a Mano Eloy eram certamente exagerados.

---------------------------Deu até no 'Fantástico': O Quintal e a Sala da Tia Ciata

O outro aspecto, este mais instigante ainda, é que, se é fato realmente que na Mangueira de 1910 não havia ainda algo que se parecesse com o ‘Samba de Partido Alto’ trazido por Eloy (fato que explicaria a surpresa do menino Carlos Cachaça) a enfática afirmação da maioria dos estudiosos de que o Samba nasceu na Praça Onze, nos quintais das tais ‘Tias Bahianas’, pode não passar mesmo de um mito, um episódio exagerado pela bibliografia. Se as adjacências da Praça Onze fossem realmente o lugar onde se localizava o ‘berço do Samba’, porque cargas d’água o Morro da Mangueira, tão perto dali, seria o último a saber, o único reduto a não participar da construção desta grande novidade que, em 1910 já deveria estar em franca e notória gestação? Talvez tenha sido porque o que se irradiava da Cidade Nova para o Morro da Mangueira, não era ainda, definitivamente, Samba, e sim Rancho Carnavalesco. É o que se pode deduzir pela lógica dos fatos, principalmente se destacarmos o emblemático detalhe da reunião na qual Eloy cantou o seu seminal Partido Alto, ter ocorrido, exatamente, na sede de um rancho, o ‘Pérolas do Egito’.Pelo visto, era mesmo das bandas do Estácio e, principalmente, da roça de Oswaldo Cruz e adjacências (Morro da Serrinha) que chegavam os novos ingredientes, para engrossar o caldo do Samba que a esta altura, já estava borbulhando, quase no ponto, ali por volta de 1910 / 20. De todo modo, mesmo sem se saber exatamente quem influenciava quem, a lista de precursores, Pais e Mães do Samba na época, pode ser bem mais extensa – e variada - do que aparece na bibliografia oficial:...'De todas as tias, a mais famosa e a mais importante foi Tia Ciata (...) em cuja casa os pesquisadores asseguram ter nascido o samba carioca. Seu verdadeiro nome era Hilária Batista de Almeida, uma mulata muito bonita, que chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1870, com 20 anos de idade. Instalada no Rio, Tia Ciata passou a ganhar a vida com um tabuleiro de quitutes baianos na rua Sete de Setembro.'Talvez seja mais razoável se deduzir, portanto, que sendo a palavra Samba, por esta ocasião, talvez uma forma ainda genérica para se designar ‘Chulas de negro’ ou, simplesmente ‘Música de negro’, o que fermentava no quintal da Tia Ciata na verdade – e eventualmente chegava até no Morro da Mangueira, sem atrair muito a atenção do povo de lá - não era exatamente o Samba definitivo mas sim, uma das muitas formas de Samba que pipocando aqui e ali na cidade, disputavam uma hegemonia que estava para se cristalizar a qualquer momento. O tal ‘berço do Samba’ poderia estar aquela altura, em qualquer lugar. Não havia uma estrela guia apontando para a 'Cidade Nova', como muitos especialistas em Samba insistiram em afirmar. Contudo, embora sendo um exagero muito oportuno e providencial, pode não ter sido tão gratuita assim a eleição da área da atual Praça Onze, por parte de nossos intelectuais, como o berço oficial do Samba. Nas primeiras décadas do século 20 (num fluxo que, se inicia na segunda metade do século anterior) o lugar já se configurara como uma verdadeira colônia bahiana, congregando emigrados de diversos tipos, inclusive personalidades do candomblé e até mesmo alguns alufás maometanos, mal vistos em Salvador desde os tempos da última revolta dos Malês.

Situada ali, bem perto do centro da cidade propriamente dita, do centro mundano incrementado pela recente criação do boulevard parisiense que era a Avenida Central, no qual se situavam os ‘points’ da intelectualidade carioca, esta colônia bahiana se prestava maravilhosamente bem – embora de forma simplista – como representação simbólica, uma espécie de microcosmo da cultura típica – idealizada - dos negros africanos na capital federal. Ao que tudo indica, no entanto, a julgar pelo que nos demonstram certos antecedentes da história do Samba, este pessoal da Bahia estava muito mais ligado mesmo é na afirmação por aqui, de suas próprias tradições culturais, trazidas do nordeste, entre as quais preponderavam o candomblé e os Ranchos (Pastoris ou Lapinhas), principal paixão cultural destes bahianos. '... Carlos Cachaça não guardou na memória o ano em que ouviu samba pela primeira vez em Mangueira, lembrando-se apenas de que foi no tempo do Rancho Pérolas do Egito, tudo indicando, portanto, ter sido antes de 1910. Mas não se esqueceu das circunstâncias em que o fato se deu... 'Aliás, pode se considerar por isto mesmo – e com certa propriedade até - que, ao que parece, houve uma curiosa subestimação – ou mesmo omissão - do caráter essencialmente lusitano da herança cultural trazida por estes grupos de bahianos para a Corte do Rio de Janeiro, herança que possui traços muito evidentes na cultura primordial do Morro da Mangueira, como bem nos demonstra o ambiente encontrado por Mano Elói, nos idos de 1910, quando lá introduziu o gosto pelo chamado Samba de fato. A implantação destas tradições luso-bahianas no âmbito da cultura urbana do Rio de Janeiro foi, inclusive, o motivo de muitas disputas e demandas internas, entre os principais líderes desta colônia nordestina, das quais a mais empolgante talvez tenha sido a que poderia ser chamada de A demanda dos Hilários, desentendimento ocorrido entre Hilária Batista de Almeida, a famosa Tia Ciata e Hilário Jovino Ferreira, segundo dizem o introdutor do Rancho no carnaval carioca, na disputa pela criação de um destes grupos. A referida disputa, de certo modo, separou os bahianos em duas facções rivais: A da Cidade Nova (Tia Ciata) e da Gamboa (Hilário Jovino) Além da eventual opção preferencial pelo Rancho Carnavalesco, a julgar por algumas entrelinhas, contidas nos muitos relatos existentes sobre o assunto, o tipo de Samba praticado na casa da Tia Ciata – a bem da verdade um reduto de certa elite negra, composta por geniais músicos e compositores profissionais, além de funcionários públicos bem sucedidos (o marido de Ciata, o médico João Batista da Silva, era chefe de gabinete do chefe de polícia do Governo de Wenceslau Braz) talvez fosse uma forma de Samba um tanto esnobe, impregnada ainda dos maneirismos estéticos dos diversos gêneros de música européia que andaram em voga no fim do Império, tais como o Schotisches, a Polka e a Mazurka.'Embora fosse daquela mesma geração, Pixinguinha não era exatamente um homem de Samba. Ele próprio contou que, nas festas descritas por Donga, não ia para o quintal: _ ’Eles (os sambistas) faziam seus sambas lá no quintal e eu os meus choros na sala de visitas. As vezes eu ia no terreiro fazer um contracanto com a flauta mas não entendia nada de samba’. No mesmo artigo, Sérgio Cabral comenta também que, um tal de Marinho que Toca, um cavaquinista, foi quem ensinou Donga a batida do Samba (provavelmente numa das festas na casa de Ciata), ou seja, já naquela altura, do mesmo modo que Pixinguinha, seu companheiro no grupo ‘Os Oito Batutas’, Donga também não era ainda muito chegado ao ritmo do qual, logo depois, seria incensado como o suposto ‘inventor’ (pelo menos em gravações) .

O que se fazia na casa da Tia Ciata, portanto, era certo tipo de samba negro sim, mas, de certo modo, um tanto ‘aculturado’, que já fora chamado antes de ‘Lundu’ e tentava agora descolar de si o nome de ‘Maxixe’, com o qual a mídia da época já ameaçava batizá-lo de vez, uma espécie de ‘Bossa Nova da Belle Èpoque’, em suma. O que se pode afirmar com certeza é que a receita de Samba tentada na casa da Tia Ciata, foi uma experiência de fusão musical que, pelo menos como Samba, não vingou. A receita que o caldeirão não conseguiu cozinhar (ou o cozido que não apeteceu a negrada, ao ‘populacho’); uma forma de Samba que, não prevalecendo, foi se diluindo, amarelando com o tempo, abafada pela batucada avassaladora que o povo negro da Roça, liderado pelo enorme poder de sedução e persuasão de figuras como Eloy Anthero, veio trazendo para as ruas da antiga Corte. Ao que nos parece, portanto, o Samba definitivo, aquele que emergindo por volta de 1920, se apossa rapidamente da cidade, só começa a tomar forma mesmo, quando o Jongo e outros ‘batuques’ instalados nas roças atrasadas da periferia, começam a se espalhar, como água pura - via cais do porto talvez - por esta cidade já irremediavelmente partida ao meio por uma imensa e simbólica ‘Avenida Central’ que, separando a população entre ‘brancos’ e ‘crioulos’; remediados e desvalidos, parte também nossa música popular urbana em duas vertentes culturais quase inconciliáveis, que só se encontrariam para desfilar no Carnaval.

Reproduz-se assim, como num samba enredo improvável, o quadro de intenso apartheid que havia sido instalado na cidade do Rio de Janeiro por seu prefeito, o ‘smart’ Pereira Passos, em 1906. Por este viés, pode-se compreender também, e com maior rigor e clareza, a natureza de uma certa polêmica que opunha de um lado, o 'samba' ‘Pelo Telefone' (aquele filho dileto do ‘Maxixe’) e de outro, o ‘Samba de Partido Alto’ (o filho legítimo da ‘Chula Raiada') aquele que enfim, logo em seguida, açambarcaria de vez o título de Samba de fato.

Num definitivo depoimento divulgado no livro de Muniz Sodré ‘ Samba o dono do corpo’, Donga afirma enfático que a melodia de ‘Pelo Telefone’ foi copiada de um tema folclórico, muito popular na ocasião (uma chula, portanto) no qual ele inseriu versos, encomendados ao jornalista Mauro de Almeida. O que conhecemos como o primeiro Samba gravado, não seria portanto nenhuma novidade. Na verdade nem o nome de 'composição' original mereceria porque, não passava de uma simples paródia (coisa que aliás, segundo o mesmo Donga, era bastante comum naquela ocasião). Podemos deduzir então que “Pelo Telefone’, era uma chula-paródia, em ritmo de Maxixe que, algum esperto produtor (Fred Figner, da Casa Edison ou o próprio Donga), detectando o grande apelo comercial da palavra, resolveu batizar de ‘Samba’. É sintomático inclusive que, começando provavelmente a ser elaborado em 1910, este ’Samba de fato’ tenha tido que esperar quase 20 anos mais para ocupar, no carnaval, o lugar que as marchas, lundus e maxixes ocuparam, durante as duas primeiras décadas do século 20.'...O primeiro rancho carnavalesco em Mangueira chamava-se Pérolas do Egito, criado antes de 1910, ano em que surgiram o Guerreiro da Montanha e um outro cujo nome Carlos ('Cachaça') esqueceu, mas que teria sido formado pelos moradores do alto do morro. Mais tarde, nasceu o Príncipe da Floresta, o mais famoso rancho de Mangueira, que adotou as cores verde e rosa.

Os negros Mangueirenses, no mesmo momento em que tentavam forjar a difícil mistura entre seus candomblés e macumbas com as dolentes marchinhas das Lapinhas, dos Pastoris e dos Ranchos dos lusitanos, devem ter ficado mesmo encantados com a astúcia e a picardia africana, angolana, contida nos ‘Sambas de Partido Alto’ trazidos por Mano Eloy. Segundo alguns autores, foi neste exato momento, quase em 1910, que eles, os Mangueirenses (junto com o pessoal da vizinha Praça Onze), foram irremediavelmente contaminados pelo vírus daquele Samba jongado que vinha da Roça ‘atrasada’. Nascia o Samba de Fato. Seu berço? Alguma fazenda de café do Vale do rio Paraíba do Sul, provavelmente. Ou, quem sabe? Algum pátio de aldeia, próximo à Luanda, Angola. De certo apenas isto: O nosso velho Samba não nasceu na Praça Onze

...E muito menos na Bahia.

Spírito Santo


Grupo Vissungo, Aniceto do Imperio e Clementina


O texto do Spirito Santo tornou-se um documento, um relato interessantissimo de um periodo meio obscuro da MPB por isto esta sendo postado, pois jongo, partidos, mercado fonografico, cultura negra, ditadura, modernidade, musica africana real, Aniceto do Imperio, Clmentina de Jesus - o samba tradicional esta incluso no processo do relato.


Música Popular Preta e MPB branca


Em 1975, em plenos anos de chumbo, foi criado no Rio de Janeiro um conjunto musical chamado Grupo Vissungo. Em 1974, ainda sem nome definido, o grupo teve como antecedentes o trabalho do trio formado por Antônio José do Espírito Santo (vocais, violão e percussão), seu irmão Luiz Antônio – Lula - (contrabaixo, bandolim, cavaquinho e vocal) e Roosevelt da Silva (Violão). É já desta fase a adoção do principal elemento da proposta do grupo, aquele que o caracteriza definitivamente: a pesquisa da cultura negra do Brasil, e a tentativa de construir, a partir desta pesquisa, um conceito de música negra brasileira moderna, coisa impensável naquela época contraditória, onde a onda vanguardista da MPB não chegava até a cozinha da tradicionalíssima música negra, espécie de ‘reserva técnica’ do folclore nacional.

A idéia ‘contraculturalista’ de uma música negra ‘pop’, era eletrizante para o clima de resistência cultural contra a ditadura, que impulsionava a juventude artística, muito criativa e atuante da época, rumo ao mergulho de cabeça na experiência pop-vanguardista-nacionalista que foi o ‘Tropicalismo’.

Mas havia também a não menos profunda busca da sutil modernidade contida na música do ‘Brasil profundo’, pesquisa inaugurada pelo fabuloso Quinteto Violado, que fazia uma interessante fusão entre a música tradicional nordestina (como a rica escala afro-ibérica de Asa Branca, de Luiz Gonzaga) com certos aspectos, digamos assim, mais avançados da chamada moderna música popular brasileira (expressos na obra de Edu Lobo , por exemplo), com elementos de jazz e música semi-erudita, num caldeirão de muita inventividade e desprendimento.

O nome do Grupo Vissungo, no contexto desta proposta, foi extraído então da expressão ‘Vissungo’ (‘Ocisungo’, hino ou canção no idioma Umbundo de Angola) que denominava cantos de trabalho da região do garimpo de ouro e diamantes em Diamantina, Minas Gerais, no tempo da escravidão. Esta característica ‘antropológica’ da proposta, em particular, acabou por revelar, de maneira fortuita, uma ligação direta entre os dois irmãos fundadores (Antônio e Lula Espírito Santo) e seu mais remoto passado. Descobriu-se assim, no transcorrer da pesquisa que a família dos dois, pela linha paterna, muito provavelmente, havia sido iniciada por um antepassado vindo de Angola, que havia sido escravo exatamente naquela região e, como tal, poderia ter um dia cantado vissungos. Coisa do destino talvez, gravado como memória genética. Ainda em 1974, já com esta mística proposta definida, o grupo adota, durante um curto espaço de tempo, o nome de ‘Sararamiôlo’, agora formado também, além dos irmãos Espírito Santo (Antônio e Lula), pelos também irmãos Carlos ‘Codó’ Brito (que substitue Roosevelt) e Lena ‘Codó’ Brito (filhos do grande violonista bahiano Clodoaldo Brito, o ‘Codó’). É assim que, agora como um quarteto, durante ensaios do recém construído prédio do DCE da UFF, nasce oficialmente com este nome em 1975, o Grupo Vissungo. É desta fase a criação das bases estético-musicais do trabalho do grupo, representadas pelo casamento entre a pesquisa de campo em comunidades negras do interior do país, e o aprofundamento dos ricos elementos de modernidade eventualmente contidos nas inusitadas escalas desta música tradicional. Este aprofundamento nascia, principalmente, do senso harmônico de Carlos Codó, herdeiro da erudição do violão de Codó pai, professor emérito, desde a Bahia, de muita gente boa, tal como João Gilberto, Caetano Veloso, Egberto Gismonti e Gilberto Gil (com quem o autor chegou a cruzar, entre uma aula e outra, na casa de Codó, no bairro do Estácio, no Rio).

Esta fase é inspirada também nas sugestões apaixonadas do historiador e acadêmico José Maria Nunes Pereira, um especialista em cultura angolana que, já na fase anterior (Sararamiôlo), chamava a atenção do grupo para a enorme beleza da música africana real. Esta fase seminal, culmina com a descoberta, por parte do grupo, da grande similaridade existente entre a cultura negra tradicional do Brasil e o que, em termos musicais, ocorria na África contemporânea - notadamente Angola e Moçambique.

A grande questão neste momento é que, apesar de se estar vivendo uma época (1978) de grande efervescência cultural, musical principalmente, havia muita restrição - e até um certo desprezo- por parte do meio musical em geral (e do mercado fonográfico em particular), por abordagens artísticas voltadas, diretamente e de forma mais aprofundada, para a cultura negra. Tolerava-se o Samba convencional e algumas poucas propostas de forma genérica denominadas ‘Música Afro’, geralmente adaptações de pontos religiosos tradicionais, extraídos do Candomblé e da Umbanda. No âmbito da música essencialmente afro-brasileira, dominada por um purismo exacerbado, a modernidade era, portanto, rigorosamente, um conceito tabu. A releitura criativa, a experimentação e, principalmente, a utilização livre de instrumentos ‘acústicos’, convencionais, misturados com instrumentos eletrônicos, como contrabaixo e guitarra por exemplo – marcas essenciais da proposta do Vissungo - já inseridos em outros gêneros musicais desde o final da década de 60 (onde pontificou o ícone “Alegria, alegria”, com Caetano Velloso e Os Mutantes) não eram, estranhamente, bem tolerados nas poucas bandas e grupos de música negra existentes. Este comportamento conservador do meio musical, de certo modo, forçou o Grupo Vissungo a participar, de forma militante, no chamado Movimento Negro, tornando-se uma espécie de símbolo musical da luta antiracista carioca naquele momento. No entanto, do ponto de vista de suas preferências culturais, havia uma curiosa contradição se instalando no seio deste movimento negro emergente que, embora firmemente interessado na erradicação do racismo no Brasil, passava a subestimar - ou mesmo ignorar - em suas estratégias e políticas, as eventuais lições advindas da luta anti-colonialista, ainda em curso em Angola e Moçambique, para exercer no âmbito externo, uma atração política, de certo modo exagerada, imitativa e acrítica, pela cultura negra norte americana, notadamente, a chamada Black Music, trilha sonora essencial da luta dos Panteras Negras e do neo islamismo de Malcom X.

Neste mesmo sentido, no plano interno, tornando suas opções culturais desta vez francamente elitistas, este Movimento Negro passou também a privilegiar uma cultura negra idealizada e, de certo modo oficializada já que, referendada por teses de mestrado de eminentes etnólogos, privilegiava muito mais o Candomblé bahiano e produtos sucedâneos, em detrimento da música negra de Minas Gerais, São Paulo e do próprio Rio de Janeiro (para ficar só nos exemplos da região Sudeste) música oriunda das colônias e ex-colônias de língua portuguesa que mandaram escravos em maior número para o Brasil, exatamente a vertente para a qual, por coerência artística, o Grupo Vissungo se voltava nesta época.

São estas contradições culturais que, afetando o mercado musical de um lado e o Movimento Negro de outro, introduzem o Grupo Vissungo numa crise de identidade que o leva a se afastar um pouco de sua proposta artística original, de vanguarda, interessado em contribuir na superação desta contradição que ameaçava afastar – como por fim afastou- o Movimento Negro brasileiro de suas bases populares mais evidentes.

-----------------Aniceto e Clementina, cadê vocês?

É ainda na tentativa de superar estas limitações ‘de mercado’ que o Vissungo radicaliza seu mergulho nos meandros da música negra tradicional, se ligando á figuras essenciais como Clementina de Jesus (por impulsão da Fundação Cultural de Curitiba, dirigida á época por Jaime Lerner, que nos une à Clementina num show antológico no Teatro Paiol) e João do Valle, ícones da década anterior, lançados nos shows ‘Opinião’ e ‘Rosa de Ouro’, mas, de novo caídos no limbo do esquecimento, fora do mercado. Neste mesmo sentido, um pouco mais tarde, o grupo se liga profundamente a Aniceto do Império Serrano, figura histórica do samba carioca mais profundo (um dos maiores especialistas em Partido Alto), relegado ao total ostracismo na ocasião e grande influência no trabalho do grupo a partir de então. A fase se caracteriza também pelo aprofundamento, por parte do grupo, de sua pesquisa de campo, exercendo de forma militante a difusão da música africana, principalmente angolana, não só em seus aspectos originais, como também em sua expressão afro-brasileira, principalmente, o Jongo e a Congada. A experiência, flagrada pela revista Cadernos do Terceiro Mundo, editada por asilados brasileiros no México e distribuída mundialmente, deu ao Grupo o status de boa referência neste campo, não só em seu viés, francamente, antropológico, como em sua opção pela difusão de aspectos da cultura popular do interior do Brasil que viviam, solenemente, esquecidos nos grotões. O radicalismo desta fase, acentuando a crise de identidade, provocou um racha no grupo e a posterior dispersão de alguns de seus membros originais – entre os quais Lula Espírito Santo - que decidiram tentar penetrar no mercado sob a forma de grupo de Samba convencional.

Sobrevém uma fase de muito engajamento e alguma incerteza artística, com a adesão de músicos amadores, de diversas procedências, compondo formações apenas adequadas, a um repertório onde predominava a música negra tradicional do interior da região sudeste do Brasil. As fusões mais recorrentes eram entre a música tradicional de Minas Gerais, e canções revolucionárias de colônias, como Angola, Guiné Bissau e Moçambique, que promoviam uma sangrenta guerra de libertação contra a metrópole portuguesa. Pontificavam no repertório, letras do poeta Agostinho Neto, musicadas por Rui Mingas, ambos angolanos e de José Carlos Schwartz, compositor e guerrilheiro guineense, gravado em disco produzido por Miriam Makeba.

Por vias transversas no entanto, esta fase (meados da década de 80) foi muito bem sucedida pois representou enfim, o ingresso do Vissungo no mercado fonográfico, a partir da autoria, junto com Wagner Tiso (e a voz de Milton Nascimento) da premiada trilha sonora do filme Chico Rei de Walter Lima Júnior. O disco gravado pela Som Livre - único da carreira do Grupo Vissungo até hoje- contém entre outras pérolas, o último registro em estúdio da voz de Clementina de Jesus, cantando a introdução da música Xico Reyna (de Espírito Santo e Samuka). ...”O épico Chico Rei deu continuidade ao projeto de um cinema histórico mais atento às elaborações mitológicas que ao rigor das versões acabadas. Lima Jr. usa a história do primeiro escravo a se tornar dono de ouro no Brasil para investigar as suas próprias raízes negras. O Grupo Vissungo, em sua fusão de arte e militância, teve papel decisivo na formatação sonora do filme, que ainda mobilizou ícones da música negra brasileira como Milton Nascimento, Clementina de Jesus, Naná Vasconcelos e Geraldo Filme. “Trecho do artigo “um cinema que quer ser música” de Carlos Alberto Mattos Publicado na revista Veredas (CCBB/Rio, Nov-2000) Seguiram-se a participação do grupo nos discos de carreira de Milton Nascimento (‘Encontros e despedidas’), Wagner Tiso (‘Branco & Preto/Preto & Branco’) e Tetê Espíndola (‘Gaiola’).

A crise de identidade do Vissungo, no entanto, prossegue pois, a vocação original do grupo na busca da modernidade artística (interrompida no início da década), só poderia ser retomada, se contasse com novos músicos com talento, experiência e vontade para encarar os novos desafios musicais que, desta feita, seriam marcados pela busca de um formato, ao mesmo tempo, moderno e popular, de preferência dançante, tendência que passava a predominar na música urbana do mundo inteiro naquela época (época do boom da indefectível ‘Lambada’).

O grupo é por fim muito bem sucedido nesta fase, encontrando com sua nova formação, composta por Espírito Santo (vocal solo e percussão), os retornados Lula Espírito Santo (baixo e vocal) e Carlos Codó (violão), além de Samuka, José Maria Flores (bateria) e Braz Oliveira (Guitarra) uma sonoridade muito aproximada do que buscava desde sua origem.

-------------Dançando no ONU Center Wien

Em 1989, com esta nova formação, o Vissungo faz então sua primeira viagem á Europa, realizando uma das melhores experiências de sua carreira no show na sede européia da ONU em Viena, em benefício da Unicef para uma platéia totalmente composta por africanos, de todas as partes do continente, que dançavam, cada qual ao jeito de seu país, aquela mistura de música brasileira, guineense e moçambicana que o Vissungo apresentava. A forte energia produzida pela curta, porém, intensa primeira experiência do Vissungo na Europa, não encontra, no entanto, grande respaldo com o retorno do Grupo ao Brasil. Envolvido em mais um de seus equívocos eleitorais o povo brasileiro acabara de eleger para presidente, o aventureiro populista Fernando Collor de Mello que, após uma série de ameaças ás ‘elites’, interrompia a maioria das iniciativas governamentais voltadas para o fomento da cultura. O intempestivo ato do ‘caçador de Marajás’, inviabilizava o trabalho de vários artistas e, praticamente, determinou a interrupção das atividades do Grupo Vissungo, que negociava com contatos da Funarte da época, a gravação de seu primeiro disco solo. É quando surge o irrecusável convite do sociólogo italiano Tulio Aymone, da Facoltá de Economia de Modena, para que o Vissungo, a princípio representado por apenas dois de seus membros, Espírito Santo e Samuka, se apresentasse no Festival Internacional de Cultura do jornal do Partido Comunista italiano L’Unitá”, em Bologna. Foi assim que o Grupo Vissungo, cansado de guerra, decidiu, numa espécie de exílio voluntário, transferir-se de mala e cuia para a Europa. A carreira européia do Vissungo se reinicia em julho de 1990, com a ida da dupla para Modena, Itália, afim de cumprir um contato para uma tournée de um espetáculo de música negra e dança afro-brasileira tradicional, cuja renda seria, em parte, revertida para a vinda do restante da banda. Artisticamente muito bem sucedida, a tournée pelo norte da Itália - Modena, Bologna, Reggio Emília, Corregio, Carpi, Ímola, etc.- área na qual as tropas brasileiras combateram na 2a Guerra Mundial (o soldado José Cyrilo, pai dos irmãos Espírito Santo, entre elas), infelizmente, não teve uma renda suficiente para bancar o sonhado resgate dos membros da banda que ficaram no Brasil. Transferindo-se para Viena, Áustria, após os quatro meses em que durou a experiência italiana, o Vissungo foi enfim recomposto com músicos locais, entre os quais o excelente guitarrista vienense Claudius Jelinek, o baixista uruguaio Pablo Solanas, o percussionista senegalês Jimmy Wolof e os brasileiros Ita Moreno (violonista) e Tatá Cavalcanti (baterista).

-----------------Vissungo afro beat

Durando cerca de três anos, a carreira européia do Vissungo, representou, como o fim de um ciclo, a realização do sonho original contido na proposta inicial do grupo, por uma música negra brasileira moderna, na qual não se abrisse mão daquelas raízes africanas mais profundas, proposta tão penosamente buscada no Brasil e enfim encontrada viva e pujante no mercado musical europeu, no qual o conceito mais moderno de música popular é aquele realizado pela maravilhosa fusão de ritmos africanos das colônias (Guiné, Senegal, Nigéria, Gana, etc.), com a música negra norte americana (Soul, Funk), conceito fundado pelo grande músico nigeriano Fela Kuti, e conhecido na África e na Europa genericamente como ‘Afro-beat’.

O resultado deste feliz, embora tardio, encontro do Grupo Vissungo com os sons africanos que lhe eram similares ou irmãos, pode ser felizmente mostrado em seu retorno definitivo ao Brasil em 5 de Novembro de 1996, num inesquecível espetáculo na Sala Cecília Meirelles, em comemoração ao mês de Zumbi de Palmares. Para a nova formação do grupo, os dois únicos remanescentes da formação original (os irmãos Antônio e Lula) recorreram a uma incrível fonte musical, de existência inpensável na década anterior: Um núcleo de jovens músicos negros, com experiência em música pop adquirida em sua dedicação militante à reggae Music, congregados no Centro Cultural Donana, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, inegável foco da posterior ascenção do reggae no mercado pop brasileiro, com o KMD5 (banda depois rebatizada como Negril) e o Cidade Negra (antes liderada pelo polêmico Ras Bernardo). Desta fonte maravilhosa e revigorante, foram arregimentados Lauro 'Biko' Farias, baixo (logo em seguida 'roubado' pelo O Rappa), Reinaldo Amancio (logo em seguida integrando o 'Cabeça de Nego'), além do fabuloso batera Jahir Soares, decano do reggae raiz carioca até os dias de hoje. Integraram também o Vissungo, neste seu último espetáculo, Welington Coelho (depois do Farofa Carioca) e Paulão Menezes (ainda hoje percussionista da banda de Bia Bedran) Ali, diante de uma platéia entre surpresa e extasiada com a diferença gritante entre o som que o grupo trouxe da Europa e os sons da comedida música negra em voga no Brasil (onde o Reggae começava a pontificar), o Grupo Vissungo decidiu se recolher a sua significância, sabe-se lá até quando.

----------------Esta matéria, sendo sobre música, deveria conter um arquivo de áudio com o som do Vissungo.

Falha da época: Além do LP do disco com a trilha sonora do filme Chico Rey (talvez ainda não lançado em CD) e de faixas há pouco tempo inseridas num remix (este sim, em CD) do disco de Clementina de Jesus ‘Canto dos Escravos’, existe muito material gravado pelo Grupo Vissungo, espalhado por aí, em mídias diversas (a maioria deste material, está em suportes considerados hoje obsoletos, tais como fitas K7 e fitas VHS). O acervo do grupo (centenas de horas de registros de áudio em fitas K7, negativos P&B e slides fotográficos) fruto de suas pesquisas de campo, até hoje razoavelmente conservado, contém também interessantes registros de shows e ensaios, no Brasil e no exterior, aguardando digitalização, missão sobre a qual, alguém terá que se debruçar um dia. Legítimo produto artístico da inesquecível década de 70 do século 20, o Grupo Vissungo pode ser visto hoje, distanciadamente, como uma espécie de símbolo natural da privação de acesso ao mercado – e aos meios de produção e registro mais elementares - sofrida por determinados artistas e grupos musicais brasileiros, antes do formidável advento desta atordoante revolução das mídias modernas, e seus meios e suportes democratizados (ou banalizados) como nunca o foram na história. Empávido, umas vezes aos trancos e barrancos, outras gloriosamente, o Vissungo durou 20 anos. Sobreviveu muito bem aos desafios de seu tempo. Na verdade, tendo sido de algum modo registrado, gravado, nem mesmo pode ser declarado clinicamente morto, ainda.Como vinho envelhecido, ele está ainda adormecido numa adega destas da vida, num quintal destes do mundo onde, brasa dormida, até hoje pulsam suas emoções, passíveis de serem digitalizadas, eternizadas, se tornando, portanto, imortais.


Eu pelo menos, um dos Espírito Santo desta história, continuo vivinho da Silva.

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'A véia preta tem cinco fio

os cinco fio do mesmo pai

na meia noiteo pai tá sumido

véia pregunta pros cinco fio:

menino preto, cadê teu pai?

'Jongo do Vissungo

Spirito Santo


Setembro 2007

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Porque não gosto de escolas de samba- 1 - Portela

Paulinho da Viola, Candeia, tradição, escolas de samba
- Mijinha, Natal, Cartola, Afonsinho, Estacio de Sá, compositores de samba, 1978.
- Documento do samba, cultura popular, samba de radio, sambas de terreiro.
Achei esta materia que não conhecia no blog Só Candeia. Eu decididamente não gosto de escolas de sambas e seus pseudo-sambas. Há muitos anos procuro ouvir sambas de todos os periodos com paciencia, mas confesso tenho uma predisposição enorme com os sambas- enredo da decada de 80 para cá. Acho que jamais ouvi um inteiro e dando uma bisbilhotada no google sobre Candeia localizei algo para contextualizar esta minha má vontade. O texto é longo, mas não é sempre que vemos ou ouvimos Paulinho da Viola e Candeia.

Papo de Candeia e Paulinho da Viola
No jornal Correio Braziliense saiu uma reportagem em que Mestre Candeia conversa com Paulinho da Viola e Carlos Elias.
Assunto: A capitalização das Escolas de Samba.
Obs: Leia com atenção o que eu exaltei em negrito lá no final. Aquela declaração Resume tudo. Não deixe de formar a sua opinião sobre isso.
(Créditos: Site oficial da Portela)

ESCOLAS DE SAMBA, CULTURA POPULAR (Correio Braziliense)
Domingo, 22 de janeiro de 1978.
As Escolas de Samba começaram a viver sua atual crise quando o sambista, para quem a Escola é uma casa, o único lugar onde ele pode se realizar totalmente, começou a perder a voz ativa, a iniciativa, sendo substituído por profissionais (cenógrafos (sic), coreógrafos, etc,) de classe média, que interferiram num processo de cultura popular altamente característico. O repórter João Bosco Rabello passou 10 dias no Rio e trouxe 20 horas de material gravado, resumidos nesta edição. O papo foi na casa de Candeia, pras bandas de Jacarepaguá. Muita cerveja e uma madrugada toda em claro. Presentes Paulinho da Viola, Carlos Elias e um gravador num canto da sala, esquecido, mas ligado, registrando fielmente o que foi dito. Participando da conversa, o jornalista do Rio Ruy Fabiano e João Bosco Rabello do Correio Braziliense, este último com exclusividade sobre o material.
No fim, um saldo positivo: algo que vira um importante documento do samba.
O MOTIVO
Transformadas em centro de atenções do carnaval carioca, as escolas de samba atravessam a mais séria crise de sua história, iniciada em agosto de 1928, com a fundação de Deixa Falar, por um grupo de sambistas do Estácio. O que inicialmente era apenas uma comunidade com a finalidade única de cantar sambas e brincar os carnavais, uma forma barata de diversão, acabou envolvida com o crescimento da cidade, pela indústria do turismo e suas conseqüentes implicações. Hoje, elas enfrentam este incômodo dilema: reagir contra a crescente descaracterização – que entre outras coisas colocou o sambista como um elemento decorativo dentro da escola – ou assumir de vez a carapuça de máquina de fazer dinheiro, que já provocou até o apelido de Escolas de Samba S/A.
Este ano, as costumeiras discussões que antecedem o carnaval foram precipitadas por um fato que acentuou mais ainda as correntes que disputam a liderança nas escolas: a escolha do samba-enredo da dupla Jair Amorim/Evaldo Gouveia para representar a Portela. Compositores de ligação recente e discutível com o universo das escolas de samba, (Evaldo Gouveia, por exemplo, declarou não gostar de carnaval e aproveitar os feriados para descansar em um afastado sítio) tiveram seu samba-enredo indicado pela direção da escola, apesar dos protestos gerais, dos mais expressivos compositores da escola. Mas a reação não foi menos violenta: Paulinho da Viola, Clara Nunes, Candeia e Monarco, nomes dos mais conhecidos da agremiação de Oswaldo Cruz, são apenas alguns dos que não se conformam com o fato e, a protesto não desfilarão este ano.
Porém, o recente episódio da Portela, reflete a gravidade da crise das escolas de samba. Para muitos, talvez a maioria, trata-se apenas de um acontecimento isolado, restrito ao âmbito da famosa escola de Madureira, quando a verdade é muito mais ampla e complexa. A verdade trata do esmagamento de uma cultura popular por elementos estranhos a essa cultura, uns na ambição desmedida de faturamento e outros ávidos de promoção pessoal e profissional. Esse processo não é de hoje que se vem desenrolando, pois, já em 1946, Cartola se afastava de Mangueira, escola que fundou, por um desentendimento com Hermes Rodrigues, que tentava fazer campanha eleitoral através da verde e rosa usando os sambistas e o prestígio da Mangueira. Muitos fatos antecederam esse processo massacrante de deformação dos valores culturais das comunidades de samba, mas ele será mais facilmente compreendido a partir de depoimentos valiosos como o do compositor Nelson Sargento, de uma memória invejável e um vasto currículo dentro do samba, além de uma participação as suas mais importantes na história da Mangueira. Mas Nelson é uma figura à parte, de uma riqueza interior belíssima e de uma força de espírito rara, qualidades que aliadas ao seu talento de compositor, pintor (de quadros e paredes) e convivências com Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho, Alfredo Português, Cartola e outros, lhe conferem uma indiscutível autoridade para falar do assunto.
Sobre Candeia, outra grande expressão do samba e que também participa dessa edição especial do CB, juntamente com Paulinho da Viola e Carlos Elias, há muito pouco o que falar, pois é figura que dispensa comentários. Filho da Portela, como o classificam alguns, Candeia há muito se bate numa luta desigual, tentando desmascarar a grande farsa armada em torno das escolas, pelas empresas de turismo, com a cumplicidade da própria Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, cujo presidente Amaury Jório, defende literalmente o princípio de Escolas de Samba S/A Candeia abriu uma alternativa para os sambistas: o Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombo, que deve ser entendida exatamente como uma alternativa e não como uma antítese, no dizer de Paulinho da Viola. A propósito, Paulinho trava com Carlos Elias e Candeia, uma discussão sobre a situação das escolas de samba em nossos dias, num papo que começou por volta das dez horas da noite e só foi terminar pelas 6 da manhã seguinte, com muita cerveja e muita descontração. Esse papo está reproduzido na íntegra e, com exclusividade nesta edição e já pode ser considerado como um documento da maior importância, um registro que certamente deve ser levando em conta, principalmente pelos sambistas, alvos principais do trabalho desses compositores.
Outra figura que comparece com o seu esclarecimento de igual valor é o compositor Elton Medeiros, que a exemplo de Paulinho (por sinal seu parceiro) e de Candeia, Carlos Elias e Nelson Sargento, é também um estudioso do assunto e sempre preocupado em manter “acesa a chama” (isso é verso de Paulinho) de uma formação cultural de um povo, manifestada de diversas formas, mas que tem na escola de samba, talvez, a usa mais forte raiz.
Disso tudo, resumidamente, podemos contar com esclarecimentos preciosos, como o batismo da Portela por uma Yalorixá africana; a exploração do mito de Natal, por elementos invasores e principais responsáveis pela deturpação e inversão dos valores dessa cultura; a existência de uma frente interessada em apagar a memória até da história do país; a omissão de determinados setores oficiais com relação ao problema; a ausência do sambista na AESERJ, que deveria ser a entidade mais interessada na defesa de seus direitos, mas que exerce papel inteiramente oposto; a imposição do nome Portela, por um delegado de polícia e, uma série de outras denúncias que precisam chegar ao público e à consciência de cada um. O problema é mais grave na medida em que se observa, hoje, uma deformação a tal nível nas escolas de samba, que fica mesmo difícil, praticamente impossível, entender uma cultura de raiz e até vislumbrar os horizontes de suas verdades, seus hábitos e o comportamento interno das mais tradicionais agremiações do Rio de Janeiro.
A abordagem que deveria ser feita, o que deveria ser dito, e até opiniões sobre a edição deste caderno, bem como a sua validade ou não, tudo isso, foi longamente discutido por Paulinho da Viola, Candeia, Nelson Sargento e Elton Medeiros. Claro que o assunto não foi abordado em toda a sua profundidade, pois para isso, seria preciso muito mais que algumas páginas de um jornal: seria necessária uma longa e dedicada pesquisa, cujo resultado teria de ser publicado em um livro. Ma, dentro do espaço que tínhamos, procuramos colocar uma visão sincera do sambista com relação a todo este processo comercial. Deve ser destacada ainda a importante presença do jornalista carioca Ruy Fabiano, que participou da noitada em casa de Candeia e do papo com Nelson Sargento, além de troca de sugestões e de idéias mantidas com ele, de fundamental importância para esta publicação.
As fotografias de todo este caderno foram feitas em épocas diferentes, parte delas na Avenida Presidente Vargas, com a participação do próprio Paulinho da Viola, no carnaval passado. Publicamos também, uma foto inédita tirada por Paulinho, na concentração da escola, focalizando Beki Klabin e um autêntico passista de escola de samba em primeiro plano. Outro documento inédito fornecido por Paulinho e Candeia, com exclusividade e publicado na íntegra, é um trabalho de André Motta Lima, Candeia, Paulinho e Cláudio Pinheiro, entregue em 1974 ao presidente da Portela, Carlinhos Maracanã, relatando os desejos dos membros da comunidade e tecendo críticas que consideraram construtivas para a escola.João Bosco RabelloO BATE-PAPOO papo foi na casa de Candeia, pras bandas de Jacarepaguá. Muita cerveja e uma madrugada toda em claro. Presentes Paulinho, Carlos Elias e um gravador num canto da sala, esquecido, mas ligado, registrando fielmente o que foi dito. Participando da conversa, o jornalista do Rio, Ruy Fabiano e João Bosco Rabello, do Correio Braziliense, este último com exclusividade sobre o material. No fim, um saldo positivo: algo que vira um importante documento do samba.
Paulinho da Viola – Eu acho que as pessoas estão pegando aspectos isolados. O negócio não é esse. Nós temos de pegar aquilo que aconteceu. Primeiro nós temos de fazer um levantamento da história do samba. O que ele significou, como ele surgiu, porque/em que condições/quem eram as pessoas que faziam isso no começo, em que condições elas faziam, o que eles diziam, o que eles comiam, o que eles pensavam, porque eles tomavam cacete.
Candeia – Isso que você tá falando aí é o que eu considero cultura própria do sambista, que é onde se choca com “esses caras” que não têm vivência, esse conhecimento. Isso exatamente, em termos objetivos: a comida, a vestimenta, o linguajar, tudo isso faz parte dessa cultura.
PV – Mas por que acontecia isso? Que processo é esse que fez com que a escola viesse se mantendo num determinado nível, com seus valores próprios, na época considerados...
C – válidos?
PV – Não, não. Considerados coisas de marginais. A linguagem do samba, tudo o que significa essa coisa chamada samba, o cara como se veste, como ele anda, como ele come, o que ele fala, como ele dorme, as palavras que ele diz, a maneira como ele diz, o vocabulário, tudo dele, entende, né? Isso aí são marginais. Isso aí são seres marginalizados, é gente que vive... são semianalfabetos...
C – Andar com o violão antigamente embaixo do braço era coisa de marginal. Com o pandeiro então... entrava no cacete.
PV – Se você não consegue situar isso dentro da história do povo da gente, dentro da cultura brasileira, dentro da história do povo carioca, da cultura carioca, o que é isso, como é que esses caras começaram, que relação é essa que eles começaram a ter com o chamado Poder, que força eles tinham para se impor, a ponto de dizer: “Ah, já que nós não podemos acabar com esse negócio que tá aí, a gente faz o quê?” Vamos institucionalizar isso. Criando o quê?Criando desfile oficial. Agora, tem o seguinte...
C – Prestação de Serviços.
PV – Se não contar essas coisas todas, que o nome da Portela foi uma coisa imposta por um delegado de polícia, que não era esse nome, se não contar esse negócio todo, se não contar a história das escolas de samba... com detalhes, não adianta.
C – Eu sou contra. Eu sou contra.
PV – Você é contra, Candeia, mas não adianta nada. Porque realmente aquilo que já foi dito, há dez, quinze anos atrás, sabe como é que é...? Em nenhum jornal é possível fazer isso. Você vai ter que dar um quadro, um panorama atual das escolas de samba, atacar aquilo que tem que ser atacado, aquilo que tá mais em evidência, mais claro, denunciar aquilo que tá mais, sabe... isso que o Bosco tá dizendo, você chega numa escola de samba hoje, nego tá cantando. “Ô jardineira, porque estás tão triste”; samba de rádio; “tudo está no seu lugar”, e os sambas de rua não estão sendo cantados...
Carlos Elias – Nada está no seu lugar, essa é a verdade.
PV – É, os sambas enredos são escolhidos arbitrariamente, não existe democracia nas escolas, quer dizer, o povo da escola não vota, isso é que tem que ser denunciado, entende? Não existe um Conselho Fiscal que seja representativo de escola, essas coisas todas têm que ser denunciadas.
C – O sambista não tem participação ativa no samba...
PV – Participação ativa no samba. Uma escola hoje é uma coisa abstrata, quer dizer, quando uma escola deveria apesar de, aquele negócio que a gente falou na entrevista, apesar de: compromissos com turismo, e coisa e tal, apesar de ser uma coisa já infiltrada e tudo, deveria, (deve) prevalecer dentro da escola valores que são fundamentais à manutenção do samba, quer dizer: uma escola de samba o que é? Implica inclusive no seu patrimônio, na sua história, no seu patrimônio cultural, quer dizer, o que é o que é? Todos os seus elementos antigos, toda a história daquilo ali, o acervo, a maneira como se dançava, os sambas tradicionais, escola de samba.
C – Exato. Pra lhe fazer lembrar, que aí eu sou obrigado a citar...
PV – Se não disser isso tudo, não adianta, eu já tô falando há uns quinze anos, tô cansado.
C – Pra me lembrar e pra manter sempre acesas todas essas formações...
PV – Eu não consigo mais falar...
C – Pra tentar mostrar é que a criação da Quilombo tá aí. Pra tentar mostrar o que era o jongo, a capoeira, o samba de roda, o samba de caboclo, uma série de manifestações que praticamente estão em extinção, tá igual à fauna, que o homem chegou lá e depredou. Então, pra manter esse tipo de coisa, é necessário que haja uma lembrança viva, porque sem as coisas tradicionais, a coisa se perde realmente. Porque nossos filhos vão perguntar dentro de pouco tempo, nossos netos, talvez, sei lá, o que foi o sambista.
Ruy Fabiano – Memória, né?
PV – Memória, muito simples. Então, naquilo que hoje é considerado folclórico, tudo bem...
C – Mas aí há outro detalhe...
PV - ...mas que seja, entendeu, colocando, em nível, mesmo do seu povo conhecer sua história.
C – Mas nós no Brasil, nós no Brasil...
PV – Isso já justifica o Quilombo.
C – Mas nós no Brasil, nós temos um outro detalhe, Paulinho, que nós consideramos as coisas relacionadas com a nossa cultura, até, por exemplo, na música popular, consideramos subdesenvolvidos, por exemplo, o baião, o xaxado, o carimbo, essas coisas assim, são consideradas músicas inferiores, classe C, compreende?
PV – Exato, mas...
C – Não, não é assim pra mim, pra você, mas então, essa tendência que nós temos...
PV – Tinhorão cansou de denunciar isso, hein?
RF – É a mentalidade subdesenvolvida, né? A reverência às coisas que vêm de fora.
C – Exatamente. É uma tendência que faz com que...
PV – Agora, temos que denunciar as razões dessa tendência. Uma das coisas que parece evidente, meu Deus do Céu, é que parece que tem uma coisa armada, um complô armado, sempre houve nesse país, um complô para...
C – Guerra Fria?
PV – Não, não. Para apagar a história do país, rapaz. Pra apagar, pra mentir, pra contar história diferente, pra inventar coisas que não existem e toda vez que você tenta trazer à tona a verdade, vem nego e afunda.
RF – Pra reintegrar o papo: você estava falando de um livro, que livro é esse?
C – Bem, o livro é o seguinte, contém fatos... (refere-se ao livro “Escolas de Samba: árvore que esqueceu a raiz, de Candeia e Isnard Araújo, publicado pela Editora Lidador e pela Secretaria de Estado de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, em 1978).
RF – Quem escreveu o livro?
C – O Isnard (Isnard Araújo, criador do projeto do Museu Histórico Portelense) ficou mais ligado em colher depoimentos . Esse livro tem até uma historinha. Quem ia escrever esse livro era eu e o Paulinho. Mas, falta de tempo, não conseguíamos nos encontrar, e eu me liguei no Isnard pelo fato de ele ter assumido lá, e eu ter sugerido a ele fazer um levantamento do Museu da Portela. Então, aproveitando o depoimento do pessoal da Velha Guarda da Portela, sempre senti necessidade de registrar esses fatos.
RF – É a história da Portela?
C – É.
RF – Mas é uma abordagem sociológica?
C – Aí é que vêm os detalhes. O livro, a princípio, era apenas um levantamento histórico da Portela.
RF – Memória da Portela.
C – É, memórias da Portela, mas a coisa se tornou tão profunda, o entusiasmo da gente foi tão grande, que não começamos a expandir todos os fatos com relação ao samba, basicamente a história da Portela. Mas não está preso unicamente à Portela, entendeu?
RF – Partindo da Portela, abordagens mais amplas, né?
C – Perfeitamente. Agora, com fatos, inclusive procurando evitar isso que o Paulinho falou aí: ser mais um livro estatístico, nesse aspecto, não. Pelo menos, eu estou contando aquilo que eu sinto, dando minha opinião, dando meu depoimento com relação a coisa que assisti, daquilo que eu vivi na minha vida de samba.
RF – Visto de dentro, então!
C – Perfeitamente. Sem pretensão literária, que nós não temos nem condições, apenas fazendo um trabalho que via servir, com toda a humildade, como um documento.
RF – Esse livro já tá pronto?
C – Já.
RF – Vão lançá-lo quando?
C – Deve ser lançado no final deste mês.
RF – Legal.
C – Sim. E vai por aí afora. Ele é um pouco crítico, mas também contém fatos relativos à Portela, tem muita coisa interessante. Muita gente não sabe, por exemplo, que o próprio Estácio mesmo, o próprio Ismael Silva participava do que ele chamava: “Vou na Roça”. Roça era Oswaldo Cruz, apenas o Estácio teve o privilégio de ter sido oficialmente registrado primeiro, mas o movimento de sambistas, é da mesma época.
RF – O Estácio era mais centralizado.
C – É, mais centralizado...
PV – Mas o pessoal antigo, ó Candeia...
C – Não, não tiramos o mérito de...
PV – O pessoal antigo sempre falou que quem trouxe o samba foi o pessoal do Estácio.
C – Perfeito, eles participavam com o Paulo da Portela, inclusive com o caso do seu Napoleão, que era jongueiro, era negócio de jongo, cruzado na linha das almas, tinha que pedir licença na hora da entrada. Tinha uma irmã do falecido Natal, que ia com o seu Napoleão, que morava ali pra baixo (Dona Benedita morava na rua Maia Lacerda, no Estácio), que freqüentava a casa das baianas (Tia Ciata, Bebiana e outras) ali na Praça Onze, e tal, aquele negócio todo.
PV – Olha, isso não vem ao caso, mas a Portela é cruzada na linha das almas. Descobri isso por acaso.
C – Cruzada na linha das almas não, a Portela tem como madrinha, é batizada por uma Yalorixá africana. É a única Escola de Samba que foi batizada por uma Yalorixá africana, Dona Neném, entendeu?
PV – Esse aspecto de escola de samba é uma coisa que nunca foi falado. Esse aspecto que é um outro lado do negócio, isto é, não sai numa matéria, isso dá muito trabalho, tem que estudar...
C – Ah, mas também não vou vender meu peixe todo pra vocês, senão vocês vão publicar antes do meu livro, vão esvaziar meu conteúdo (risada). Então, vocês compram o livro e depois copiam aí. Foi um trabalho de pesquisa muito grande, rapaz, não foi mole fazer não. Tive de levantar muita gente aí. Seu Caetano. Olha, queres ver uma polêmica? Já começa por aí. Nós não tiramos seu mérito, não ferimos todo o lado positivo de contribuição que ele deu à Portela, mas abordamos o assunto com clareza, de uma tal maneira, porque são testemunhos de pessoas que ainda estão vivas e que negam que Natal foi esse mito, pelo menos que dizem que foi. O fundador, isto e aquilo...
PV – Não foi bem isso. Mas não foi mesmo... Atualmente, eles estão explorando o nome, a figura do falecido Natal para tudo, entendeu como é que é o negócio? Fizeram do Natal uma espécie de bandeira e tão explorando esse mito até hoje. Tem coisas realmente inexplicáveis. Mas isso a gente não vai dizer, porque nós não tamos aí pra denegrir a imagem de um homem já falecido e que o saldo dele foi positivo. Ninguém tira o mérito dele não. O saldo dele é realmente muito positivo em termos de samba, mas também não é o que exploram por aí, que falam, não chega a ser mesmo. Acima dele existem pessoas, vamos dizer, em relação à Portela, que foram muito mais importantes para a Portela e que não tiveram a notoriedade que alcançou o Natal. Como o Caetano, como o Rufino, o Paulo da Portela.
RF – Ele era uma figura especial, independente de tudo.
PV – Bem, mas o que tem a ser dito para os sambistas...
C – Coisas diretas...
PV – Sambistas: vocês precisam tomar consciência com relação ao que está acontecendo, porque o que está acontecendo é o seguinte, todo sambista tem que tomar conhecimento do que está acontecendo, todo sambista, quer dizer, todos aqueles caras que têm realmente um vínculo, ligados à escola, tudo aquilo que tem sido feito até hoje com relação às escolas é um negócio que precisa ser esclarecido, precisa ser discutido, como estamos discutindo aqui. Éque parece que existe um complô, a impressão que se tem é que tudo que existe nos ambientes todos de escola de samba, é sempre no sentido de apagar uma memória, rapaz, apagar no sentido assim de dizer: “O passado foi uma coisa que morreu”.
C – Eu sei. Deixa eu fazer uma referência, Paulinho. Por que você não fala da minoria dos autênticos? Quer dizer, a minoria dos autênticos é o tipo de...
RF – Isso tem outro motivo, né, quer dizer...
CE – Tradição já era!
C – É a frase deles. Agora, uma coisa que você é culpado. Paulinho, eu queria que você conversasse com o Isnard: o Hiram tá explorando aquela entrevista que você deu naquela ocasião (73), até hoje...
PV – Não está.
C – Não está?
PV – Não tá. Eu li o que ele falou a meu respeito. Que em 68 eu...
C – Não, você não tá me entendendo, ele não está explorando porque ele declarou isso. Ele apenas cita isso, ele diz: “eu tô falando como tradicionalista e tal...”
PV – Posso falar que o Hiram... aquilo ali, rapaz, eu voltei a falar nessa entrevista, não adianta ele explorar, porque eu voltei a falar o seguinte: apesar do compromisso existente hoje, das escolas com o turismo, com não sei o quê, porque nós não podemos realmente imaginar uma comunidade fechada, isolada, não sei de quê, “patati patatá”, tudo isso que já falamos há cinqüenta anos, o samba, mantém, é necessário para ser samba, manter certos valores fundamentais dele, senão desvirtua tudo, então isso ficou muito claro, quer dizer, não tem, não pode explorar nada. Eu não quis justificar a situação atual, pelo contrário, eu disse que apesar dessa loucura toda, é necessário ter certos valores que façam com que aquilo tenha um peso realmente verdadeiro e não essa coisa falsa, rala, artificial, que já é a substituição desses valores, sabe como é que é, posso enumerar aqui, pô!
RF – Padroniza algumas coisas...
PV – Claro.
C- Certo, Paulinho. Agora, uma coisa que era muito importante, não parece nada, mas que tem que ser dito alto e bom som, é de que, eu sei que é teu pensamento também, falo por você, no caso, de que toda a nossa luta, todo nosso trabalho, pra não ser confundido, nós não temos nenhum interesse político, não pretendemos ser diretor da Portela, nós falamos como sambistas, pelo que vivemos, certo? Quer dizer, por trás de nossa posição, não existe nada a ser escondido. Não tenho pretensão, não quero ser diretor, não quero ser tesoureiro, não quero honraria, não quero receber nada assim pra mim. Com toda sinceridade, mal comparando, não vou dar uma de Pelé, cruzar os braços e dizer que tá tudo bom, uma democracia bonita, e tal, igualdade, tudo jóia, certo? Dar uma de Pelé e deixar o barco pegar fogo. Então, nosso trabalho, é claro, não estamos lutando em honra própria, mas e até por aqueles que não têm condições de falar, eu às vezes até chamava a atenção do Paulinho e dizia: “Olha, Paulinho, você tem, quer queira, quer não, uma posição de liderança perante esse pessoal, eles esperam que você... tem que chegar e falar, porque a gente tem realmente que falar". Agora, pra mim, é até uma satisfação que você Paulinho esteja mais entusiasmado que eu. Eu que já tô me sentindo um pouco desgastado cansado de estar brigando aí, e você vem essa: “Não, nós temos que falar, temos que... sei lá”. Eu confesso a você que até me surpreendeu essa tua atitude agora, viu, malandro?
PV – É isso que... não, rapaz, peraí...
C – Não, não que eu esteja negando as coisas que você faz não, você não modificou nada, não, mas é uma posição realmente assim, mais, assim...
PV – Mais ativa, mais ativa...
C – Mais ativa, é isso, vamos dizer assim. Não é que você fosse um omisso diante da situação não, mas é que realmente...
CE – Chegou uma hora que a coisa... a gente fica naquela de achar que vai melhorar...
C – Ah, exato, exato, positivo. Eu esperava que chegasse ao ponto que chegou. Você nunca esperava talvez, Paulinho saber que...
PV – Não tô fazendo defesa de coisa nenhuma. Tô querendo dizer o seguinte: é só pegar as entrevistas que eu já entreguei na mão de vocês, que nós fizemos naquele quadrado, eu, você, Elton e Martinho.
C – Perfeito, perfeito.
PV - ...e a que eu dei pro Torquato, pô, cansei, e ainda deve ter mais lá emcasa, em...
C – Mas hoje você fala com um tom de objetividade que talvez não falasse com tanta clareza.
PV – Ó, eu já assumi coisas assim, por exemplo, a revista Homem queria que eu fizesse uma matéria sobre... é aquele negócio que a gente não sabe. Eu,rapaz, não tô a fim mais de fazer coisas, entende, como a gente vem fazendo até hoje, Candeia, de dar entrevistas como Quixotes, sabe como é que é? Sabe, querendo... não tem sentido. O que nós temos que fazer hoje é realmente armar um time contra isso que tá aí, mas um time assim, quer dizer, o Quilombo tá lá, ele vai sair, ele vai fazer... Não tem que colocar o Quilombo contra nada, sabe. Com a antítese não sei de quê, nada disso. Nós temos que colocar o Quilombo como uma coisa a ser construída, como uma alternativa, mas não precisa colocar como antítese. Outra coisa: o que nós temos que fazer é chamar na responsabilidade uma porção de gente que vive falando de escola de samba há uma porrada de tempo... ô desculpe! Não sabia que tinha mais gente aí...
C – Não, não tem nada não, isso é até o palavrão mais bonito que se diz por aqui.
PV – Sabe o que é? É que a gente fica sem querer assumir uma posição mesmo de luta, de todo mundo na luta. Não adianta mais um jornalista escrever um negocinho, não adianta. Tem que fechar todo mundo numa coisa só, discutir o assunto profundamente, como já foi feito há muitos anos atrás, negócio de seminário de samba, simpósio que teve em 69, que nós temos tudo isso lá registrado e tudo, e fazer outro, num outro nível, quer dizer, aquilo de 69 foi feito só pra “acoxambrar tudo”, acomodar, tinham as teses, e tudo ficou lá. O que tem de ser feito hoje é negócio pra sair um documento definitivo sobre escola de samba. Mas uma coisa definitiva, assim, levantamento de tudo, histórico, chamar todo mundo que teve realmente, palavra e peso dentro dessa história toda, trazer o depoimento dessa gente, fazer, se possível, até um livro, que uma coisa dessas...
C – Com essa profundidade toda, só um livro.
PV – Eu acho que não precisa ser exatamente um livro. Pode ser numa linguagem jornalística, mas pode ser um documento muito importante, porque aí, esgota isso, sabe como é que é, senão a gente vai passar a vida inteira naquele negócio que eu te falei: todo ano antes do carnaval tem um cara perguntando: “O que você está achando, como era antigamente? Hoje tem muita pluma, botaram não sei o quê.” Muitas entrevistas que nós demos já se perderam, muita coisa já se perdeu, que não é de hoje isso, é desde aquele tempo, pó, entende? Sei lá. Então, isso aí eu acho que tem que ser denunciado sempre, mas não nesse nível em que as coisas ficam abstratas, sabe? Olha, o crioulo de escola de samba ficou por baixo, o sambista não sei de quê, o sambeiro não sei de onde, a classe média... não, nada disso. Isso aí já era. O que tem de ser colocado é isso: fazer um levantamento mesmo, sério, das escolas de samba. O seu comportamento atual, das suas relações internas, de como se vota numa escola,em que situação está o povo, realmente, da escola, se está votando ou não, quem decide, como é que se decide, como é escolhido o samba-enredo, sabe como é que é? Que interesses tem por trás disso, quanto se fatura, onde vai esse dinheiro, essas coisas todas, pô!
CE – Quanto se gasta pra tentar ganhar um samba-enredo? Essa dupla (gastou cerca de 70 mil cruzeiros, o Norival Reis e o parceiro dele gastaram quase 40...
PV – Isso aí, não somos nós que estamos dizendo, foi o próprio Hiram mesmo que disse nos jornais. Hoje em dia tá todo mundo aí pra faturar, quer dizer, o cara assume essa. O cara que tá dirigindo uma escola de samba, ele não pode fazer isso, Candeia. O cara que dirige, que tá fazendo o carnaval, assume o seguinte: “Tá todo mundo aí para faturar mesmo”. Tá nos jornais, pô! Não dá mais pra desmentir.
C – Olha só, outra bobagem que o Hiram falou. Olha a inversão de valores: que a escola está perdendo estes anos por culpa nossa (a Portela não ganhava desde 1970), os tradicionalistas.
PV – Porque estamos de fora?
C – É, não sei, não entendi.
RF – Dentro do processo deles.
C – É, nós tradicionalistas é que somos culpados.
PV – Nós tamos aí dentro, rapaz. Nós fomos chamados este ano, como já disse na entrevista, me recusei a fazer samba-enredo...
C – Uma bandalheira o que ele falou. Ele inverteu tudo, presta atenção, inverteu...
RF – Ele quer dizer o seguinte: o fato de vocês não compactuarem com eles só trava o processo que eles querem implantar dentro da escola.
C - Mas, como compactuar? Olha, vamos fazer uma análise rápida, pra depois o Paulinho falar, que ele é mais objetivo. Olha como é difícil, no clima atual o processo que eles criaram, tá difícil. Eu respondo por mim. Por exemplo, ter que corromper bateria pra colocar meu samba, eu tenho que pagar, pra adquirir simpatia, porque senão eles boicotam mesmo. Porque o clima atual é em relação ao dinheiro. Tem que ter torcida organizada, levando gente de fora da escola, tem que reunir, por exemplo um grupo do bairro em que eu moro, ensaiar aqui, de tarde, e levá-los em caravana, de ônibus, o cara vai pra curtir um choppinho...
CE – Pagar ingresso de todos eles na porta...
C – É, tem que investir nisso tudo, pra poder competir dentro da escola, com a minha torcida, aquela facção, senão eu vou pegar no microfone, vou cantar sozinho, ninguém vai cantar comigo.
PV – O que tem de ser denunciado é o seguinte: dinheiro, sabe como é, dinheiro, a própria corrupção, ela sustenta a mentira durante até muito tempo, isso já foi dito, de outra forma, tô parafraseando aí, mas não vai sustentar durante todo o tempo, porque essa droga vai ruir, rapaz. Não tenha ilusão, vai ruir, as pessoas vão começar a perceber...
C – Eles tão com o poder na mão. Paulinho fala em termos objetivos. Pra mim, beleza... eles não vêem beleza naquilo que eu vejo. Eles não vêem graça na Neuma, na Maria Joana do Império Serrano, na Tia Vicentina, na Tia Clementina, certo? Eles não vêem beleza nesse pessoal. A beleza que eles querem ver é a da estética daquela mulher seminua, daqueles quadris bonitos, quer dizer, um negócio onde a minha posição em relação à deles já está completamente distanciada. A nossa posição está completamente distanciada.
PV – Ninguém tem nada contra essa mulher, seminua, é que...
C – Não, eu gosto...
PV – O problema é isso, não tem nada a ver, mulher pelada sambando.
C – É gostoso, é bonito, toda mulher de corpo bonito é interessante. Até uma outra mulher é a primeira a reconhecer a beleza daquela. Acho que a coisa tá sendo configurada de uma maneira, tá sendo colocada no lugar das coisas fundamentais, com relação ao samba.
CE – Substituição da comissão de frente.
C – A comissão de frente, por quê? Porque comissão de frente são aqueles coroas da antiga, e que até não podiam mais sambar, tavam naquela de prestar um serviço à escola, era um negócio de manter aquela dignidade do sambista e tal. Isso foi substituído por mulheres jovens, exuberantes, lindas. É isso. Então, esse processo, entra por quê? Pra agradar o chamado mercado de consumo, agradar o turismo. A imagem do nosso carnaval não está sendo vendida corretamente, porque o carnaval é uma festa que devia ser vendida como integração do povo, quer dizer, o patrão e o empregado desfilando na mesma escola...
PV – Você se engana. Ela está sendo vendida corretamente, porque ela está, você usou bem o termo, quer dizer, sendo vendida. Então, corretamente, por quê? Porque os caras querem isso mesmo. A gente, você já cansou de ver anúncio, assim, não tô falando que o turismo fez isso, entende, mas a gente já cansou até de anúncio. Eu já vi um anúncio do Haiti, para Executivos, que era uma mulher seminua, sabe, com o seio de fora, sabe, era um convite para negócios pro Haiti e pra ser lá, pra uma ilha dessas, Havaí, não sei onde é que é. Era uma mulher com o seio de fora, entendeu? Eu já vi declaração de nego, aqui, de autoridades aí, dizer que o que nós temos que vender mesmo é mulher pelada, e que nós temos que vender mulher, futebol, samba, essas coisas todas. Que isso é que nós temos que vender. Turismo daqui, não pode vender outra coisa. Quer dizer, existem essas implicações, que precisam ser analisadas, entende? O que eu sinto é isso. O que tem de ser denunciado, rapaz, é essa coisa arbitrária, que vem de cima pra baixo, dentro de uma escola de samba. Quer dizer, um cara se arvorar e dizer: EU mudo o samba-enredo, EU decido o que é isso, EU faço isso, EU faço aquilo, ou então vira um outro e diz: “quem não estiver satisfeito vá para a arquibancada”. É isso que tem que ser denunciado, quer dizer, nenhuma escola de samba...
C – Brasil, ame-o ou deixe-o...?
PV – Não... é o cara chegar e dizer: olha aqui, quem não estiver satisfeito que vá pra arquibancada. Isso aí...
C – É uma coisa altamente fascista.
PV – Então, isso aí é que ... eu acho que... Quer uma sugestão para matéria? Abre a matéria assim: “QUEM NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ PRA ARQUIBANCADA”. Ou “O SAMBISTA QUE NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ RECLAMAR NA ARQUIBANCADA”. Pronto, é assim que a gente tem que abrir a matéria.João Bosco Rabello - Paulinho, a Portela te pediu para fazer samba-enredo este ano?
PV – Pediu, aí eu disse que não fazia. Eu preferi colaborar com um samba de quadra.
JBR – E você cantou este samba na Portela?
PV – Cantei. Cantei diversas vezes. Isso é que eu tô falando. Mas quando eu te sugeri que falasse com Fernando Pamplona, porque ele é um cara que trouxe muita coisa positiva pro samba. Ele se defendeu de muitas acusações...
C – Mas ele foi engolido pelo processo.
PV – Peraí, ele se defendeu...
C – O próprio monstro que ele ajudou a criar está engolindo ele.
PV – Ele foi pro rádio e falou e se defendeu. Pra ele a pergunta é muito simples: Ele desencadeou um processo de transformação das escolas que é assumido por ele. Ele chegou no Salgueiro e mudou tudo mesmo. Antigamente o samba era feito assim. Tinha as comissões de carnaval e coisa e tal. Vou te dar uma exemplo do que eu quero dizer. O Lan (cartunista ítalo-argentino e portelense Lanfranco, que completa, em 2005, 80 anos), o desenhista, assumiu uma posição em relação ao samba. Ele é portelense sabe desde quando? Desde 1951/2 mas nunca deu um risco para a Portela, nunca deu um traço para a Portela. Isso tem que ser dito. Ele cansou de ser convidado, ele podia ter feito carnaval para a Portela, desenhando figurinos, há anos atrás. Ele nunca fez isso.
C – Aliás, diga-se de passagem, foi traído naquela passagem do Ilu-Ayê (enredo de 1972, com o qual a Portela obteve o 3º lugar), onde o carnaval tinha sido... eu tinha dado a idéia do carnaval, ele (Lan) desenvolveu e depois o Hiram entrou e assumiu e ficou como dono da idéia que era minha e dono do desenvolvimento que era do Lan.
CE – E botou na Revista da Portela o Candeia como colaborador e...
C – E eu como colaborador, como pesquisador, quando a idéia era minha.
PV – Então, o Lan...
JBR – Por que o Lan se recusou a fazer carnaval para a Portela?
PV – Pelo seguinte: ele dizia que “não vou fazer carnaval para Portela porque eu acho que vou interferir num processo que não me diz respeito”.
PV – Respeitando uma cultura própria. Então, eu acho que dentro da Portela a obrigação da Portela é procurar dentro da Portela os caras que podem fazer um traço melhor para a Portela, sabe? Que podem desenhar para a Portela, que vai encontrar. Eu, por exemplo, acho que o mais representativo em termos de, ou desenho ou traço, em termos plásticos, na Portela, hoje, em dia são aquelas carinhas pintadas pelo Paulo Pinduca.
C – Na sede velha, né?
PV – Não, na sede nova. Aquilo é a coisa mais representativa. Então, esse cara teve coragem de assumir isso. Ele disse: “Não, eu dou força, sou portelense, mas, eu não dou nem darei um traço para a Portela. Porque isso é uma coisa da escola. Tinha que se descobrir dentro da escola um elemento que fizesse isso. O Pamplona foi o cara que chegou dentro de uma escola de samba e simplesmente mudou tudo, assim, desenhou tudo, desde o princípio. Antes, eram os caras da escola que faziam tudo. Ele chegou e monopolizou tudo. Determinou tudo dentro da escola.
C – É bom que se diga que dentro desse processo houve muita coisa positiva.
PV – Peraí. Respeitando uma série de coisas, realçando, considerando aspectos da cultura do negro brasileiro, que não eram considerados dentro da escola de samba. Fazendo aquela coisa pro alto, sabe como é? Com uma visão bastante positiva. Eu acho. Agora, com esse processo, o Salgueiro começou a aparecer e foi a um nível tal, que ganhou com o Chica da Silva (em 1963).
Agora, o seguinte: que negócio é esse de escola de samba, de repente, chegar a um nível, isso precisa ser esclarecido, em que tudo é decidido por um único elemento, por um único carnavalesco, que faz tudo? Chega a um nível de loucura tal, de abstração tal, de delírio tal em que fica todo mundo assim, juntando um monte de dinheiro pra escola comprar a figurinista (aqui, referem-se a Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, ex-alunas - na Escola Nacional de Belas Artes - e ex-assistentes de Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona) tal que ganhou o carnaval passado, pra trazer o carnaval para a nossa escola este ano, vamos ver se a gente acha um cara que tenha dinheiro para comprar o fulano, vamos trazer esse cara pra cá, etc. Então, eu faço uma pergunta para o Pamplona: se você desencadeou este processo, de uma maneira que a gente já considerou que é positiva, você já defendeu, já explicou através disso e daquilo, que eu também já li, etc. Tudo isso tá perfeito. Isso é uma coisa pelo negro, foi uma coisa anunciada inclusive pelo Arthur Ramos, lá na Praça Onze, constatado por ele entendeu? Foi uma coisa assumida pelo negro. Foi aquela coisa que foi posta e nego não reagiu, nego pegou aquilo e viu aquilo como uma saída pra samba, permitindo toda uma série de infiltrações que não são de hoje e o Pamplona se agarrou a isso, justificou. Tudo bem. O que eu quero saber é o seguinte: que o Pamplona acha desse processo atual? Um dia eu encontrei ele na televisão e disse: “Escuta, você tá sabendo que nego tá cantando ‘Ó, jardineira, por que estás tão triste’ e não sei o quê? Não, isso não se trata de culpá-lo. Apenas eu quero saber qual é o pensamento dele em relação a isso, entendeu? Que atitude ele toma agora em relação a esse comprometimento todo? É importante.
Por exemplo: o Nelson de Andrade (ex-presidente dos Acadêmicos do Salgueiro no período 1956 a 1961 e responsável pela ida de Fernando Pamplona a escola tijucana , ex-presidente da Portela no período 1962/1966 e autor dos enredos portelenses “Rugendas: Viagens pitorescas pelo Brasil, 1º lugar em 1962; “Segundo Casamento de D. Pedro I”, 1° lugar em 1964; “Histórias do Rio Quatrocentão”, 3° lugar, em 1965; “Memórias de um Sargento de Milícias”, 1º lugar em 1966 e “Tal é o Dia do Batizado” – com Juvenal Portela e Laurênio - , 6º lugar em 1967) anda dizendo e já cansou de dizer mesmo, que a história de escolas de samba é dividida em duas partes: antes e depois dele, Nelson. Então, é preciso saber, chegar perto do Pamplona e perguntar qual a posição dele.
C – Eu só queria acrescentar rapidamente ao que o Paulinho falou com relação ao Pamplona, sobre a maneira como eu vejo a participação dele dentro desse processo todo que ele ajudou a criar. É o seguinte: quando o Pamplona entrou na escola de samba e deu essa dimensão toda, essa nova visão em relação ao samba, não há dúvida também que houve um lado negativo, e o Paulinho citou aí. O fato de que os carnavalescos passaram a ser pagos a preço de ouro e, também, com esse processo, nós, ao invés de incentivarmos a arte popular, porque em vez de colocar o elemento nato, o artista primitivo, aquele elemento que tem condições de desenvolver o seu trabalho, tiramos dele a possibilidade imediata e total de ele trabalhar.
PV – Perfeitamente.
JBR – Sem discutir a intenção boa ou má do Pamplona, pode-se dizer que sua participação e inovação dentro da escola de samba foi o ponto de partida dessa corrida do ouro, certo?
PV – Não. A coisa não deve ser colocada nesse nível.
RF – Ele estilizou uma manifestação espontânea dos caras com padrões trazidos de fora de quem tem uma formação diferente daquela.
C – Exatamente, perfeito. Quando ele transformou tudo, empregando talvez, na confecção das alegorias, materiais até então estranhos àquela cultura, àquele meio ambiente. Estilização, sofisticação.
PV – Mas até nesse plano estético, a gente...
C – É necessário que fique registrado que nós não somos contra a evolução, nem contra as posições de atualização em todos os sentidos. Porque tudo evoluiu mas tem de haver uma evolução equilibrada.
PV – E a gente pode ser até contrário a isso, mas já é uma outra discussão, não tem nada a ver. Eu, por exemplo, prefiro mil vezes um carnaval feito... bom, podem me chamar de folclorista, do que for, azar, eu assumo. Prefiro mil vezes um carnaval feito por um cara que tá vivo, mas que tem o vocabulário dele, que é X, tem a linguagem dele que é aquela e que, se você entregar o carnaval na mão dele, ele... “seu” João, por exemplo, você vai entregar o carnaval na mão dele e ele vai chegar e vai dizer: “Eu tenho um carnaval que são as datas que não sei de quê, patati patatá”. Ou se pegar um cara que vai fazer os bonecos... não importa. O que interessa é que seja um cara da escola, com a visão dele. O que me interessa é saber até que ponto isso vai contribuir para um carnaval. Mas, essa é minha visão particular que não entra nesse papo. O que eu quero saber é o seguinte: essa interferência política dentro da coisa, de o cara assumir uma atitude dentro da escola que é autoritária de dizer: “É isso que tá aqui e acabou”. Com toda a sinceridade do Pamplona que nunca recebeu dinheiro pra fazer o que fez. Isso tem de ser dito. Ele fez porque gostava da escola.
C – O trabalho dele no Salgueiro foi por amor.
PV – Por amor, e isso tem de ficar claro. Não é como nego tá fazendo, ganhando milhões pra fazer um carnaval, entregando a vida dele lá e vivendo daquilo.
C – Um absurdo!
PV – Então, o cara chega, vem não sei de onde e pega dinheiro pra fazer carnaval. Não, eu prefiro dar esse dinheiro, então, pro João das Couves fazer também. E que se disputa no nível de João das Couves, eu não quero disputar no nível de artistas do municipal.
RF – Dentro dos padrões de “bom gosto”...
PV – Eu discuto esses padrões de “bom gosto”, isso é discutível.
RF – Eu também.
PV – Isso não me interessa, isso pra mim é uma farsa, essa estética é uma farsa.
C – Isso tem de ser colocado muito bem para que nossa posição não seja confundida com a posição de anticultura, não é isso. O que nós estamos colocando é que o elemento que antes confeccionava umas alegorias tinha que ser considerado e até julgado de acordo com o grau de escolaridade que ele tinha, que não pode ser o mesmo do cara que faz escola de Belas Artes.
RF – Ai, a manifestação deles ali, a linguagem do samba é daquela comunidade ali, que tem um nível de escolaridade X, mas vivência diferente.
C – Perfeito, mas aí é que o conceito foi modificado. O cara que veio das Belas Artes, em vez de dar a esse elemento meios para ele desenvolver o seu trabalho, ele o sobrepujou, ele matou, tirou essa chance. É como no samba. Ninguém pode exigir que um Mijinha, o próprio Manacéa, ou os outros façam uma letra como a de não sei quem aí... vamos dizer... o Vinícius de Moraes, por exemplo. Tem que respeitar as posições e condições e vivências diferentes.
RF – São linguagens diferentes.
C – São linguagens diferentes. Não que não haja poesia na letra do Mijinha não, certo?
PV – Ah, sim, faça essa ressalva.
C – É preciso dizer isso sim. As pessoas é que às vezes formam discriminações, porque não sabem sair daquela redoma de intelectualidade.
RF – É questão de padrão, de valor.
C – É saber, então, encontrar arte, beleza, naquele elemento que faz aquela rima de amor com dor, mas que sabe dizer de coração. E as pessoas de uma hora pra outra transformaram tudo isso.
JBR – Dentro desses padrões e tal, como é que vocês vêem a Beija-flor?
PV – Ih, rapaz...
C – Peraí. Tem fatos novos em relação à Beija-flor. Bem, antes de mais nada é necessário que se registre que Joãozinho Trinta é cria do Fernando Pamplona. Então, é conseqüência natural do trabalho de Fernando Pamplona, já é fruto do trabalho dele.
JBR – Bem, mas, bem na frente daquilo que o Pamplona iniciou, né?
C – É, exato, já vem dentro do mesmo processo, mais agigantado.
PV – Uma pergunta cretina pra esses caras. Isso é o que eles chamam de socialização “do samba”? “Democratização” do samba? Todo mundo poder chegar e fazer o que quer, abrir, isso é que é chamado “abertura”? Em que o valor dos caras, a linguagem dos caras... o cara quando chega e diz: “Muito embora abandonado (canta exaltado) eu estou conformado com a minha dor, Deixa eu viver sozinho, eu vivo bem sem teus carinhos”. Em detrimento disso aí, vem um babaca desses e fala essas merdas que tão falando aí. Eu quero perguntar é isso aí: Isso que é a “democratização do samba”? Quer dizer, “abrir”, isso é que é “abrir” certos valores pra nego chegar e dizer que quer, entende? Esmagando essas coisas.
C – Esmagando esse tipo de obra.
PV – É isso que eu quero que eles me respondam. Se eles disserem: Não, é isso mesmo, evolução pra nós é isso, então, eu calo minha boca, porque eu não concordo com isso.
C – Então já tens a resposta, porque o Hiram considera o Jair Amorim e o Evaldo Gouveia (compositores do rádio, de fora do meio das escolas de samba) os maiores poetas de escola de samba, ele disse isso. Um absurdo. To denunciando mesmo, é pro gravador registrar. Disse ainda que a letra da Portela deste ano é a melhor que a escola já teve em sua história.
PV – Ficou louco. Ficou completamente louco!
C – É dito por ele. Falou pra mim, não mandou recado não. Disse pra mim.
JB – Qual a posição do Hiram Araújo dentro da escola?
C – Olha, vou te dizer qual é. Vou abrir o jogo. É a denúncia...
PV – No dia em que eles fizerem um samba assim (canta exaltado): “Quero viver como um passarinho/cantar...”
C – Ô, rapaz, Paulinho já disse pra você que eles não têm condição pra fazer.
PV – No dia em que eles fizerem um samba desses...
C – Eles não têm um negócio chamado cultura própria de sambista.
PV – Vivência.
C – Exato, vivência de sambista, sofrimento, meio ambiente. Você sabe perfeitamente que a formação até harmônica de um samba-enredo sempre foi diferente da de rádio, de bloco...
PV – Eu quero que eles façam um verso com o sentido deste de Cartola, por exemplo: “À vezes dou gargalhada ao lembrar do passado”, ou, então, “semente de amor sei que sou desde nascença”, posso enumerar milhões deles aí.
C – O próprio Paulo da Portela já tinha umas letras consideradas bem avançadas pra época.
PV – Quero que eles digam isso.
C – Na Portela tinha um cara chamado “Fininho” que era um poeta assim, que até complicava as coisas com o vocabulário dele e até mesmo as mulheres da escola não conseguiam cantar os sambas que ele fazia. Mas, voltando ao assunto, eles não têm essa cultura própria de sambista, isso é verdade. Então, jamais o nome deles será citado. Até há bem pouco tempo havia diferença entre um samba de escola de samba e um samba de bloco, pra samba de rádio. Sabe por quê? Na sua estrutura, na sua formação de harmonia e melodia, nós tínhamos diferença, nós sabíamos... Hoje em dia, o negócio ficou assim, uma um espécie...
C – (cantando) ...uma voz que me chama/corre e vem ver/essa mulher que chora...
PV – Se for enumerar vai dar de vinte a zero.
C – “Louca para mim voltar/ela está/Deixa o carnaval passar...” Quer dizer, a estrutura harmônica, a melodia...
CE – Acontece que esses caras não sabem fazer isso.
PV – Não, não, mas isso tem que ser denunciado. Nego fala de escola de samba hoje, assim: O sambista “autêntico” e tal. Essa palavra está desgastada. Não é sambista autêntico não. Substitui o termo “sambista autêntico” por um verso de Cartola. É simples, é muito simples, substitui o termo por um verso de Carlos Cachaça, por um verso do Mijinha, por um verso do Zinco, por um verso do Silas de Oliveira, do Osório, do Alvaiade, por um verso do Mano Décio, do Alberto Lonato. Substitui, meu Deus, substitui. Em vez de colocar sambista “autêntico”, põe um verso desses. Ta tudo aí por ser feito, sabe? Pega uma letra de estrutura mesmo e “taca” aí. Taca o samba do Cartola, quando ele foi convidado a voltar para a Mangueira, depois de muitos anos afastado, e ele não se sentiu à vontade porque a realidade era outra diferente. Então, o que ele fez? Ele fez uma coisa da maior dignidade que uma pessoa pode fazer. Ele respondeu com um samba. Agora, você vai ouvir o samba?
JBR – Sim.
PV – “Todo o tempo que eu viver/só me fascina você/Mangueira/Guerreira na juventude/fiz por você o que pude/Mangueira/Continuam nossas lutas/podam-se os galhos/colhem-se as frutas/outra vez se semeia/E no fim desse labor/surge outro compositor/Com o mesmo sangue nas veias”. Quando é que esses caras vão fazer um samba desses? Nunca, nunca!
C – E são pretensiosos, inclusive em dizer... Quando eu coloquei, afirmei que faltou a eles humildade, confirmo, realmente, faltou humildade.
RF – Faltou tudo, humildade e talento, sobrou ignorância.
C – Faltou também conhecimento.
PV – Pô, ter a pretensão de dizer, de subestimar o passado da Portela, pelo amor de Deus!
C – Deturpando. Então, vieram falar pra mim que têm seis anos de Portela como justificativa! O que que há?
CE – Têm seis anos de ignorância.
C – Pó, eu recebi herança de pai pra filho. E que tivesse seis anos? Isso aqui é importante. Evaldo Gouveia deu uma entrevista há uns três anos em que ele declara, na época do samba do Pixinguinha, que nunca freqüentou escola de samba, que ele costuma ir pro sítio em época de carnaval no Rio de Janeiro, tá registrado, é só pegar a entrevista.
CE – Foi em 74, eu me lembro.
C – Isso é fundamental porque não é a minha palavra nem do Paulinho da Viola, é dele. Ele diz que nunca passou um carnaval no Rio de Janeiro, diz que veio do Norte e que entrou nesse “negócio” de escola de samba convidado pelo Jair Amorim.
PV – Agora, chamar a gente de racista, isso é a maior leviandade.
C – Isso é tática fascista, de intimidação.
PV – Claro.
C – Vou explicar por quê. A razão por que isso é tática fascista de intimidação. Eu já a disse a você, que o que está havendo no samba é problema de discriminação de aspectos sociais; poder econômico e, realmente, o crioulo o maior atingido. Qual é a maioria do operariado? Não é o negro que tem menor poder aquisitivo, não é ele que compõe a maioria dos que moram em favelas? Isso é uma realidade, um fato, uma constatação. Não existe nada disso deracismo nosso. Mas, quando a gente cita esse aspecto do que é o negro realmente que está sendo um tanto marginalizado dentro da escola de samba, aí eles acham que nós estamos invocando essa posição de racismo. Nem cabe mais isso hoje.
RF – O racismo é deles que querem impor lá dentro as mesmas discriminações existentes cá fora...
C – Exato, é isso mesmo. Sabe o que é isso? É tática, a velha tática de chamar o cara de comunista. Eu não engulo mais essa. Pode querer me rotular, me chamar disso e daquilo, mas já não estão me dizendo nada, inclusive, porque existem caras de pele branca dentro de escolas que fazem e sabem muito mais de samba do que muito crioulo por aí, portanto... Dentro da favela, lá no Acari, onde é o foco maior do Quilombo, lá nós temos elementos brancos que fazem parte de tudo, mas por quê? Porque estão integrados, sabem fazer a coisa. A mesma jogada, não existe isso.
PV – Claro, mas nego ta falando uma linguagem que é completamente diferente.
C – Isso é tática de intimidação, para rotular a gente.
PV – Eles usaram o termo racista, bem claramente. Sabe o que eu estou a fim de fazer? Pegar isso tudo depois, fazer um documentário, sozinho, assim: colocar toda a minha posição em relação a isso tudo e assinar embaixo. Eu acho que esse negócio não pode ficar assim sem resposta.
C – Quero ressaltar uma coisa aqui. Esse tipo de entrevista que você está citando aí, de nego nos chamar de racista, disso e daquilo, tá sendo apadrinhada, apoiada por dirigentes da escola. Quer saber quem? Maurício (de Mattos, presidente da revista Rio, Samba & Carnaval, presidente da ala dos Estudantes, criada em 1968 na Portela, e atual presidente da GRES Acadêmicos da Rocinha), Carlos Lemos (jornalista ex-integrante da Comissão de Carnaval da Portela e atual Coordenador do júri do Prêmio Estandarte de Ouro do jornal O Globo) e Mazinho (Osmar Nascimento, filho de Natal, ex-presidente do Conselho Fiscal da Portela, marido de Vilma Nascimento, fundador da GRES Tradição). São eles que têm feito uma espécie de...
PV – Tudo bem...
C – Em resumo: o que significa a posição desses compositores em relação à Portela? Houve uma crise na escola com a escolha do samba-enredo sobre Pixinguinha, do Jair Amorim e Evaldo Gouveia, que culminou com a marginalização do Zé Kéti dentro da escola. Agora, o negócio está se voltando contra mim e o Paulinho. Aos poucos, me parece que há um processo quase sistemático de afastar as pessoas com uma certa posição de destaque dentro do samba, e sei lá, parece que para deixar o campo aberto, uma ala de tradicionalistas, de conservadores, o rótulo que eles quiserem dar, de “sambista autêntico”, sei lá, e poderem penetrar na escola livremente. Então, seria este o melhor sistema . Pôxa, afastaram o Zé Kéti, agora essa campanha, essa deturpação contra nós que realmente não tem sentido, fundamento, nós estamos chamando a atenção. Nós temos um documento que foi entregue na Portela, quando nós reclamamos e o Carlinhos Maracanã nos disse: quem tiver algumacoisa pra dizer que o faça por escrito. E nós fizemos um documento.
PV - O que está neste documento são coisas que realmente existem, entende? Eu, por exemplo, se for chamado por um cara desses, se um cara desses quiser discutir comigo o assunto, debater, eu, a qualquer momento, publicamente, abro o jogo. Quer dizer, se for uma polêmica, no nível que for, eu topo. O grande problema não é esse. Se não tiver uma polêmica, se nós não conseguirmos fazer... Escola de samba hoje é o seguinte: não existe um livro escrito sobre escola de samba que seja verdadeiro.
C – A propósito, eu estou resumindo aí um trabalho em livro...
PV – Certo, mas não existe um livro até hoje, que realmente tenha colocado, pelo menos, o samba, o problema do sambista, tudo enfim. Eu sempre ouvi dizer pelo Edson Carneiro que o melhor livro de escola de samba foi escrito em inglês. No Brasil, não existe nenhum. Esses todos que saíram aí são superficiais, sabe? Falando coisas que todo mundo já sabe, estatísticos...
C – Peraí um pouquinho, sem visão, sem conteúdo.
PV – Então, o que acontece é o seguinte. É tempo já de se pegar isso tudo e tentar fazer um
material, uma coisa completa sobre o assunto, com peso e profundidade realmente. Porque, ô Candeia, essas coisas mesmo publicadas no Correio Braziliense, que dizer, lá em Brasília, elas não vão ficar largadas, porque tudo o que é publicado é uma coisa registrada, é um documento. A qualquer momento, você puxa esse documento e diz: Olha, ta aqui, ta registrado e tal. Essa matéria do CB não vai esgotar o assunto, ela vai abrir uma frente enorme. A coisa tem de ser colocada dentro do ponto de vista sociológico, histórico, etc.
C – Talvez o trabalho que eu estou fazendo com o Isnard, o nosso livro, não esteja no nível que você está falando, mas dentro da família portelense com depoimentos da Velha Guarda e etc. A pesquisa que nós fizemos neste livro que deve sair no final mês contém muita coisa que vocês vão gostar. Os problemas da descaracterização, do aspecto social e tudo, o que era o samba, com fatos, depoimentos, tudo.
CE – Está com você ou está na Portela este material?
C – Não, está com o Isnard, porque nós não temos condições de deixar isso lá. Este livro, eu e Paulinho íamos fazer juntos. Ele, por falta total de tempo, foi adiando durante anos e, aí eu acabei iniciando o troço. Mas o importante é que este trabalho vai preencher, em parte, esses senões que nós estávamos citando aí. Então, eu creio que será um pequeno degrau galgado dentro da enorme escadaria a ser explorada e vencida. Também eu não tive condições de escrever um livro com toda a profundidade das escolas de samba, porque o meu âmbito de informação é a Portela, eu me baseei na Portela, mas, mesmo assim, ele tem bastante conteúdo.
JBR – Mas, talvez a Portela, seja um reflexo de toda essa crise que atravessam as escolas de samba.
C – Ah, sim. Eu creio que sim.
JBR – Porque ela teve o mesmo começo das outras, atravessou as mesmas fases e no fim, agora, a grande crise e descaracterização do samba desabou dentro da Portela, em cima da Portela, entende?
PV – Mas eu acho que ainda existe uma certa estrutura de comunidade, sabe? Uma coisa assim... não sei. Na Mangueira tem a comunidade que é do morro de Mangueira. É aquela velha história: nós fomos jogar outro dia contra a Mangueira (a Portela tinha um time de futebol, composto por compositores e ritimistas) e empatamos de 1x1 e o Afonsinho (ex-jogador de futebol, famoso por, na década de 70, liderar o movimento pela profissionalização dos jogadores de futebol) queria entrar no time da Mangueira. É um negócio engraçado, o Afonso jogou já com a gente e tudo, tá sempre lá no time e eu cheguei pra ele e disse: o Afonso, nós estamos meio quebrados e tal, você não quer jogar com a gente? Ele disse: Não, eu não posso fazer isso porque sou mangueirense. Aí eu disse: Então nunca mais joga na Portela. Aí, ele foi arrumar uma vaga na Mangueira e aí o treinador falou assim: Olha, não leva a mal não, mas aqui só joga nego do morro. E ele ficou de fora (risadas).
RF – Eu gostaria que o Elias contasse como foi a sua saída da Portela.
CE – Eu, Candeia e Paulinho estávamos fazendo um trabalho lá de moralização da ala (de compositores). A ala tinha muita gente e nem todos eram compositores. Então, tinha que ser consertado. Foi em 71 ou 72. Então, começamos a ver quem fazia samba de terreiro mesmo, samba-enredo, fizemos concursos internos para apurar isso.
C – E ainda vêm dizer que nós não participávamos. E o que é isso? Nós estávamos dando o máximo de nós.
CE – É, nós fizemos o concurso. Como concurso era exatamente para ver quem era realmente quem é dentro da ala. Então, nós só poderíamos admitir outras pessoas na ala depois que já tivéssemos visto, dentre os que já estavam na ala, quem poderia ficar, certo? Mas, o presidente da escola, por motivos que... (ri), não cabem aqui especificar, queria impingir um determinado compositor na ala, entendeu? Aí, queria que ele concorresse no certame queestávamos transando. O Carlinhos Maracanã queria que o David Corrêa concorresse, mas o David não era da escola, como poderia?
C – David era de um bloco lá da Pavuna.
CE – É. Aí, pra tentar contornar as coisas, o Candeia achou que poderia deixar o cara participar do concurso, inclusive, para testa-lo também como compositor. Mas, o samba dele foi eliminado logo de cara, né.
C – Mas não foi eliminado pela gente. Tinha uma comissão formada por pessoas competentes.
CE – E isso dele participar já foi uma concessão, uma consideração nossa.
C – Por sinal, o samba dele foi eliminado porque na época havia um samba novo do Vinícius de Moraes, aquele “Tonga da Mironga do Kabuletê” e que ele fez um samba que era a mesma coisa, mas sem a qualidade do Vinícius.
CE – Então, mesmo não ficando na ala, o cara participou de uma coisa interna da escola, para atender um pedido do presidente. Mas, não aprovou, o samba dele foi eliminado, foi provado que ele realmente não tinha condição. Mas, o Carlinhos Maracanã insistiu que ele tinha que participar, mesmo sem pertencer à ala, entendeu? Aí, a coisa foi até o dia em que me chateei. E o cara ia todo dia lá pro ensaio querendo cantar. Começou a ficar muito chato. O ensaio era em Botafogo (na Sede Náutica do Botafogo de Futebol e Regatas, conhecida como Mourisco), né. Candeia, vez por outra ia lá e ficava meio de longe assim, como uma espécie de guardião. Quando o Candeia não ia, o “chaveco” piorava, pois o cara ficava querendo cantar de qualquer maneira. Aí, um desses dias em que o Candeia não foi, o Mazinho, pra me atiçar, falou: Pô, vocês não querem deixar o rapaz cantar, pois o samba dele em Jacarepaguá pegou fogo. O certo é que um dia em que o Candeia não foi, o Carlinhos cismou que o cara ia cantar o samba dele no ensaio em Botafogo. Ora, sem pertencer à ala e com o samba dele eliminado. Se outros compositores que eram da ala e tiveram seus sambas eliminados não iam cantar, como é que um cara que não pertencia à ala da Portela, e que teve o seu samba eliminado, podia fazê-lo?
C – E esse negócio que o Paulinho citou aí. Nego chega e vai entrando na maior. O Joãozinho Trinta que está na Beija-Flor e ninguém sabe por quê... Bem, a gente sabe porque, mas chega de repente assim e assume uma posição de comando. Bem, a Beija-Flor é um caso à parte, há um interesse político, é bom nem falar muito...
PV – Sobre isso aí é bom depois a gente se reportar às últimas declarações de Carlinhos Maracanã, que disse assim: “Em 72, eu cheguei na Portela e acabei com a máfia da escola”.
CE – Vai ver quem era a máfia...
PV – Pois é, vai ver quem era...
RF – Era o sambista (risadas).
CE – Exato, éramos nós mesmos. Mas, então, não tinha cabimento você permitir que um elemento que não era da escola e cujo samba já havia sido eliminado, participar dos ensaios, cantando o dito samba. Aí, ele se aborreceu e disse lá o seguinte: “Pô, eu fiz um pedido, sou presidente da escola, certo ou errado, tem que fazer o que eu mando, entendeu?”
C – Mas, você passou por cima do porquê dessa atitude do Carlinhos, dessa imposição...
CE – Ah, eu já não me recordo...
C – Não, você sabe sim.
CE – Deixa pra lá. Mas, aí eu to ouvindo aquela gritaria, aquele bafafá no meio da quadra, o Natal lá e Paulinho depois me contou que Natal teve vontade de me dar uma bolacha (risadas). Eu tava atrapalhando a política deles. Natal era presidente de honra, mas foi o Carlinhos que deu a decisão: tem de contar, que ele era o presidente da escola e a gente tinha que fazer o que ele mandasse. Então, eu achei que não devia fazer e tirei minha camisa (nessa época a gente usava camisas iguais) pedi uma emprestada ao Waldir 59, fui embora e não voltei mais. No dia seguinte, o Mazinho me chamou pra conversar, aquele blá-blá-blá, né?
C – É, e vieram aqui em casa me chamar pra voltar, porque eu conivente com a tua posição, me solidarizei, né. Achei que devia, porque você era nosso auxiliar imediato e achei que quando fizeram isso com você fizeram comigo também. Aliás, foi a única tentativa da Portela em formar uma ala de compositores moralizados. Hoje tem lá uns cento e poucos compositores e, verdade seja dita, nem todos têm condições de estar numa escola de samba da tradição da Portela. Mas, isso faz parte do processo de eliminação de todos os valores de peso dentro da escola, afastar essas pessoas que “atrapalham”. Eu não entendo o porquê disso. Porque há uma preocupação muito grande em fazer show, em faturar. O Hiram até andou dizendo aí numa entrevista que o negócio é faturar, ele falou um monte de bobagens que até agora eu não entendi. O que tem o mundo árabe com isso, hein? (risadas). Eles disseram isso. Que que nós temos com essa pomba de mundo árabe?
JBR – Como é que o Amaury Jório (um dos fundadores do GRES Imperatriz Leopoldinense, do qual foi presidente e ex-presidente da AESG/AESCRJ entre 1970 e 1978) e o Hiram Araújo entraram nesse negócio de samba, hein?
CE – Pela Imperatriz Leopoldinense.
JBR – O Hiram é médico, né?
CE – É, e o Amaury é farmacêutico.
RF – São sócios na farmácia e tal...
CE – Eles não podem dizer que nós não fizemos nada. Não podem negar o valor do nosso trabalho pois nós fizemos um movimento tão grande e tão certo naquele curto espaço de tempo, organizando a ala, saiu até um disco pela Odeon (em 1972) e que atrasou por causa dessa confusão que eles criaram. Foi tudo bem planejado, começou em maio com a abertura das inscrições e em junho nós ouvimos as músicas e em julho foi executado o festival.
PV – Foi gravado na Odeon?
CE – Foi você quem produziu, já esqueceu?
PV – Não, não.
CE – O Trabalho foi todo feito dentro do prazo previsto. Não houve furo. O único furo que houve foi o retardamento do lançamento do disco, por causa dessa confusão que eles fizeram. Aí, nós ficamos afastados. Paulinho se aborreceu, não queria continuar, mas depois o Candeia insistiu e ele acabou fazendo o disco e, eles com inveja da gente, quiseram fazer o disco também e fizeram um outro (Refere-se ao LP Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, gravado pela Continental, também em 1972, com os seguintes samba e intérpretes: Ylu-Ayê (Silvinho do Pandeiro); O mais belo requinte (Avelino); Manchete (Tacira da Portela); A noite vestia azul (Catoni); Saudade (Tacira da Portela); Andorinha torta (Avelino); Decepção (Tacira da Portela); Minha ambição (Cabana); Nova forma de amar (Silvinho do Pandeiro); Choro (Adilson); Segundo rio que passou (Adelino); Só lágrimas (Silvinho do Pandeiro) e Mestre Cinco e os Cobras da Bateria da Portela) com os compositores perdedores, mas aqueles que gravaram conosco não fizeram nenhuma outra gravação (sic). E eles fizeram rapidamente um outro disco lá com David o mais não sei quem lá. Mas um disco mal feito, correndo.
C – Mal feito em tudo.
CE – E tem outro detalhe: no ano seguinte, eles tentaram fazer o mesmo torneio de samba que nós tínhamos feito, mas não deu pé.
C – Nunca mais realizaram outro trabalho igual àquele. Mataram, tiraram a possibilidade, nunca mais realizaram um trabalho de organização, aquele movimento foi de uma importância fundamental dentro da escola, sabe por quê? Porque ali nós já estávamos sentindo a necessidade de soerguer coisas que estavam se extinguindo. Então, nós fizemos aquele concurso, mas mantendo as diversas características, quer dizer, o samba de terreiro e o partido alto, exatamente para incentivar o pessoal a voltar a compor e cantar samba de terreiro e partido alto. Mas, o que fizeram esses inovadores? Mataram tudo isso, jogaram por terra. Não era nada fechado, havia um clima de acesso mas um acesso gradativo. Um coisa normal que todo mundo passava. O cara chegava numa escola de samba ficava numa espécie de estágio, fazendo samba para a escola, para ver se dava pé mesmo, e se era aprovado. Todo mundo da antiga conta isso. Eles conseguiram derrubar tudo isso. E são esses mesmos elementos que dizem que nós não participamos. Nós temos participado e continuamos participando, só que a nossa participação não é considerada ou então eles nos usam da maneira que nos usaram, que foi uma coisa acintosa. Nos chamaram para participar de uma comissão julgadora de samba-enredo, cuja música já estava com a carta marcada, quer dizer, já sabiam quem seria o vencedor. E nos chamaram pra poderem dizer mais tarde que o Candeia e o Paulinho da Viola participaram da comissão. E aí, nós levados por um espírito de cooperação, de participação, fomos. Fomos usados. Onde o tiro saiu pela culatra e eles não esperavam foi que nem eu nem Paulinho votamos no samba dos caras. E não foi nada combinado não. Foi uma questão de sensibilidade, foi de consciência, comunhão de pensamento. Porque, meu irmão, se nós tivéssemos votado naquele samba...
PV – Eu disse lá: olha, esse samba aqui não tem nada a ver, não pode, é ruim.
C – Não tem a menor característica de samba-enredo, é uma coisa forjada. Até então, o samba-enredo tinha uma característica própria, ele tinha uma melodia e uma harmonia diferente dos sambas de rádio.
PV – Olha, se for mexer nesse negócio vai ser uma pesada. Nós estamos nos referindo ao samba da Portela, agora se vocês forem ver, escutar os outros sambas das outras escolas, vão ver que é tudo uma coisa só. Aquela coisa enjoativa, repetitiva, chavão, cansativa, padronizada, mal gravada, com aquele negócio assim de “vamo lá minha gente”, forçando uma alegria que não existe, sabe como é?
C – E um: É, aquele negócio de “Que beleza”, né?
PV – Era preciso fazer uma análise disso, pegar e mostrar o que está se repetindo. Os sambas-enredo estão chatos, feios, repetitivos, sem nenhuma criatividade. Agora, é chato pra gente falar isso, porque nós somos compositores também. Daqui a pouco todo mundo se levanta contra a gente pra dizer: “Pô, esses caras são uns despeitados” (risadas). Agora, porque o exercício democrático dentro das escolas, como havia, quer dizer, o que é o exercício democrático? O tempo para os compositores trabalharem nos seus sambas, terem maior liberdade, não estarem tão comprometidos com esse tempo para gravar o disco, através da AESERJ que envolve negócio de dinheiro, senão não dá tempo. Eu já denunciei isso numa reunião aí e disse que isso tem que acabar.
C – Quando eu chamei a atenção para esses contratos assinados com a AESERJ, foi por causa disso. Que dizer, chegou o final de novembro o samba tem de estar pronto.
RF – E com isso fica prejudicada a qualidade do samba, né?
C – Além de diversas outras implicações, mas a primeira é essa. Olha, uma coisa que foi dita e foi até o Paulinho quem disse, na reunião da Portela, foi que voltassem todos os sambas e se começasse tudo outra vez.
PV – Não. Eles acharam isso. Eles pegaram e disseram: “Olha, realmente, não tem nenhuma letra à altura.” Aí, o Hiram tomou a palavra e disse: “Olha, eu dei toda a liberdade, pra que eles (os compositores) dissessem aquilo que sentiam com relação ao enredo. Dessem a visão deles, queria que dessem a visão pessoal de cada um.” Foi isso que foi dito pelo Hiram. Aí, eu disse: “Não, nesse caso, já que a gente constatou que não tem nada à altura, só tem duas opções: ou você, Hiram, volta atrás e manda começar a feitura dos sambas outra vez, volta tudo outra vez, e não vai dar tempo, ou você assume isso. Diz, explica publicamente que a Portela resolveu dar toda a liberdade aos seus compositores do tema “Mulher à Brasileira” e o que saiu foi isso, um visão média do homem de escola de samba. Uma visão pessoal do sambista, com relação à mulher. Então, nós da Portela, assumimos isso”. Mas, existe um compromisso com a mentira, é uma coisa nojenta e incrível. Volto a dizer: a impressão que dá é a de que existe um complô armado para se apagar, mas apagar mesmo, assim: Não, o passado das escolas de samba é um negócio que não existe. Escola de samba é agora “essa coisa fantástica que existe agora”.
RF – Claro, claro.
C – Eu to ouvindo dizer que quem vai surpreender este ano vai ser a Beija-Flor. Está ensaiando quase em regime militar, cinco horas por dia, a portas fechadas. Não sei se por dedicação ou por amor, ou sei lá porque, existe lá uma disciplina muito rígida, num regime de respeito, do medo e do terror. Vai ver que é por dedicação, por comprometimento, coisas assim. Bem, segundo o Joãozinho Trinta, vem ensaiando um samba no pé...
RF – Mas, esse regime de terror que você diz o que é? Quer dizer, você vê isso como uma coisa positiva?
C – Não, não é isso. É positivo o lado da disciplina e, isso também é porque a Quilombo sacudiu a cuca de muita gente, lutando contra esse estado de coisas. Mas, regime de terror não é bom, não. A moral da história é que parece que a Beija-Flor vai surpreender no carnaval (o enredo para 1978 foi "A criação do mundo segundo a tradição Nagô", com o qual a Beija-flor obteve o primeiro lugar e, por conseguinte, o Tetra-Campeonato). Mas, dizem que não é essa “surpresa” dos anos anteriores não. É samba no pé mesmo. Dizem. Então, dizem que o Joãozinho Trinta vai acabar com esse negócio de mulher seminua em cima de carro alegórico, outras subindo nos carros para dar beijinhos. Ele diz que vai dar o grande golpe e inclusive vai cobrar de você, Paulinho, e vai dizer: “Como é Paulinho? Como é Candeia?”
PV – É (irritado) mas não foi assim no ano passado. Ele veio com outras coisa que não considero escola de samba.
C – Não, mas este ano será, dizem, diferente. Agora, olha a minha conversa com o Hiram. Aliás, o foi no dia em que a Clara (Nunes) lançou o disco dela (As forças da natureza, com show de lançamento no Portelão, eternizado em placa de bronze ainda existente numa parede da quadra) e você estava lá, eu nem pude falar com você.
PV – Fui lá por causa da Clara e depois me mandei. Não fico mesmo. Fui lá por causa da Clara e só.
C – Eu também. Nem cheguei perto, fiquei na cozinha da Tia Vicentina (casa existente entre a Praça Manacéa e a área coberta: neste espaço eram realizados os pagodes com o famoso “feijão da Vicentina” e são realizadas as feiras de fantasias, às quartas-feiras), mas olha só. O Hiram foi lá bater papo. Ele não diz as coisas com fundamento. Conversamos mais ou menos uma hora. Ele não é tipo de pessoa que diz as coisas com fundamento. Ele me decepcionou porque eu percebi que o Hiram não fala as coisas por saber, com fundamento, ou defendendo pontos de vista dele. Ele apenas é um cara que transmite aquilo que outros...
PV – Porta-voz.
C – É. Porta-voz. Um papagaiozinho, certo? Não, diz as coisas por saber ou porque pensa assim. Eu até pensei que fosse haver um “tête-a-tête”, de alto nível, eu defendendo a minha posição e ele defendendo a dele, mas, não deu porque o cara é fraquinho, é um São Cristóvão. Então, o que aconteceu? Eu disse pra ele que a Portela é a única escola que tinha condições de fazer uma abertura, de não se prender ao chamado mercado, de atender ao consumo, porque a Portela tem um patrimônio e tem 19 carnavais ganhos, então a Portela pode abrir com tudo isso, pode dar uma pancada nisso que ta aí. Aí, ele falou: “Não, porque eu ainda não ganhei nenhum carnaval. Eu preciso ganhar um carnaval pra manter diálogo com você.” Eu disse: “Pô, mas a escola está divorciada, aquele velho papo, há quanto tempo vocês não travam um diálogo com o pessoal da escola? E ele disse: “Só tem diálogo se a Portela ganhar um carnaval.”
PV – Não ganha, não ganha.
C – Como, se está tudo “arrumado” pra isso?
PV – Mas, as minhas fontes são seguras. São aquelas fontes...
C – Mas eles estão convencidos que ganham, com o dinheiro.
PV – Mas não ganham. Enquanto essa diretoria não mudar, não ganha carnaval.
C – Pois eles acham que ganham.
PV – Deixa eles acharem. Não é dinheiro não, é outra coisa.
C – O que é, política?
PV– Não, Candeia, é lá no Fundamento, entende?
C – Certo, certo. Mas, eles estão convencidos... Deixa eles se convencerem.
PV – Guarda bem o que eu vou falar. Só não acontece na Portela por causa da tradição. Mas, esse ano descem quatro escolas e uma vai ser grande, esta ano. Este ano (de fato, “caíram” para o então Grupo Dois os GRES Arranco do Engenho de Dentro, Arrastão de Cascadura, Unidos de Vila Isabel e Império Serrano). Eu queria que acontecesse isso com a Portela, sabe por quê?, Saía essa moçada toda, que está aí, que só tá a fim de dinheiro e não iam querer investir milhões numa escola que está no segundo grupo. Seria a maneira de a Portela renascer.