domingo, 12 de julho de 2009

Samba de fato


Texto/parte do livro do Spirito Santo que conheci virtualmente no site overmundo. Muito instingante e aguardo o livro com ansiedade


Este post é um trecho do livro, ainda no prelo, denominado 'O Samba e o Funk do Jorjão', cuja idéia central é esmiuçar e desconstruir alguns dos mitos, supostamente, criados em torno da história do Samba - enquanto uma espécie de síntese da cultura do negro brasileiro, em geral - mitos estes que, como ocorre com muitas outras ficções antropológicas montadas no Brasil, foram construídos por criativas comunidades de intelectuais, ao longo do tempo e com intenções, quase sempre, muito bem medidas. Embora tenham sido baseados, claramente, em premissas equivocadas, infundadas ou mesmo deliberadamente falsas, infelizmente, estes mitos foram se cristalizando até se tornarem verdades absolutas, oficiais, por força de sua insistente reiteração (principalmente por certas vias acadêmicas). Ao que parece, na maioria dos casos, a principal função destas mistificações, é dar sustentação a certos paradigmas da excludente sociedade brasileira, entre os quais aquele que tenta estabelecer – sempre sem afirmar - a existência de uma espécie de hierarquia cultural (ou mesmo intelectual), entre as raças ou classes no Brasil, que daria alguma legitimidade a desigualdade social predominante. Dentre estes eletrizantes mitos, o mais curioso talvez seja o do 'Berço do Samba', que parece tentar comprovar - na verdade, de forma extremamente sutil - a velha tese racista de Nina Rodrigues sobre uma improvável supremacia dos negros bahianos ('sudaneses' supostamente maioria étnica na Bahia) sobre os demais (negros 'Bantu', vindos de Angola para as fazendas de café do Vale do Rio Paraíba do Sul, certamente, maioria étnica no Rio de Janeiro desde, pelo menos, o início do século 19). Entre outras fontes, recorri para esta parte do trabalho, aos escritos (em notas assinaladas) de Nei Lopes – que gentilmente assina o prefácio do livro - além de Muniz Sodré e Sérgio Cabral, o pai, especialistas que dispensam quaisquer comentários)

Com vocês então:

O Mito do 'berço do Samba

--------------------------------Não deu no jornal:

O dia em que um Samba foi cantado na Mangueira...pela primeira vez ...'Quem cantou foi Eloy Anthero Dias, o ‘Mano Eloy’, um personagem legendário do samba carioca. Morador de Madureira, na época, Mano Elói viria a fundar mais tarde pelo menos três escolas de samba (Prazer da Serrinha, Deixa Malhar e Império Serrano). Foi ainda, segundo dizem, um respeitado pai-de-santo e, durante muitos anos, destacou-se como líder sindical dos estivadores do cais do porto. '...Mano Eloy cantou primeiramente na casa de Tia Fé e depois para os integrantes do Pérolas do Egito. Era um samba do tipo partido alto em que se repetia o refrão e improvisavam-se versos. O refrão dizia apenas o seguinte: ‘O padre diz Miseré Misereré nobis’. Em seguida, vinham as quadras improvisadas, quase sempre relacionadas com as circunstâncias em que o samba era cantado, Carlos Cachaça lembrou-se que, numa delas, Mano Elói brincava com a dona da casa, inventando versos como "amanhã vou na casa de Tia Fé", rimando com "vou tomar 'café' '.O Samba de Partido Alto cantado por Eloy, principalmente pelo fato de usar uma rima com ‘café’, poderia ter algum remoto parentesco com o famoso ‘Batuque na Cozinha’ que, por sua vez, já havia sido um conhecido Lundu de letra africana, meio cabalística, bastante famoso na Corte Imperial como ‘Lundu do Pai Zuzé’ (este sim, matriz evidente do famoso e posterior ‘Batuque na Cozinha’ (assinado por João da Bahiana).

Lundu do Pai Zusé (domínio público - século 19)

‘Batuque na cozinha ,

Sinhá num qué

Pru causa da crioula

do Pai Zusé

Auê, Zambi...Zique...pá ,

Zique...pá ,

Zique...pá , Zique...pá ...

_ Cadê pirigurê? (caxinguelê)...

'Batuque na Cozinha (João da Bahiana, século 20)

'Batuque na cozinha a Sinhá num qué

Por causa do batuque eu queimei meu pé....

Eu fui na cozinha pra pegá cebola

E o branco com ciúme de uma tal crioula

Deixei a cebola, peguei na batata

E o branco com ciúme de uma tal mulata...'


--------------------------Existem muitos outros aspectos curiosos, instigantes mesmo, naquela primeira audição de Samba na casa da bahiana Tia Fé, na Mangueira dos idos de 1910, protagonizada, pelo ilustre visitante Eloy Anthero Dias, um encantado Carlos Cachaça, e o pessoal do rancho ‘Pérolas do Egito’, muitos deles talvez futuros integrantes do ‘bloco dos Arengueiros’, segundo consta, o núcleo formador da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Embora eles sejam considerados hoje em dia fatos consumados e estabelecidos, que tal dar uma olhada neles, sob outro ponto de vista? Para começo de conversa, há na crônica sobre as origens do Samba, um inexplicável exagero na hora de se falar desta impressionante figura que foi Eloy Anthero Dias, o Mano Eloy. O que se vê invariavelmente legendado em sua história, na época em que cantou pela primeira vez um Samba na Mangueira, é a sugestão de que ele era um ‘bamba, exímio sambista, jongueiro, pai de santo e macumbeiro’, cheio de super poderes, um verdadeiro ‘Superman’ negro. Ocorre que este surpreendente Mano Eloy (com certeza um nome que merece mais notoriedade do que lhe dão os especialistas em Samba), pelos dados até agora disponíveis, devia estar, no máximo, com 22 anos na ocasião descrita por Carlos Cachaça (que seria mais novo ainda que Eloy). '

...Há 30 anos que Eloy Anthero Dias (agora aos 43 anos) ...faz parte do Samba- essa dança que encanta e embala. Durante este tempo, inúmeros sambas fez ele, inclusive ‘Miserê’, ‘Não vou lá no candomblé,’ ‘Moro na roça’, e ‘B com A’, estes tiveram retumbante sucesso' . (Trecho de biografia de Eloy publicada pelo jornal ‘A Rua’, na ocasião em que foi eleito o primeiro cidadão Samba do carnaval carioca, em 1936)Estando há cerca de sete anos no Rio de Janeiro e havendo ingressado no chamado mundo do Samba com cerca de 18 (portanto há apenas quatro anos antes desta sua ida à Mangueira), Eloy devia ser aquela altura, astuto sim, despachado, descolado; um jovem prodígio até mas, experiente com certeza ele não poderia ser. Não havia bagagem de vida, cabedal. Havia muito chão ainda para o futuro ‘bamba’ percorrer. '... Sambista nascido em Engenheiro Passos, no estado do Rio de Janeiro em 1888 e falecido em 1971, na cidade do Rio – para onde viera com 15 anos de idade- (...) Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro de cânticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. Seu companheiro nessa empreitada foi o já referido Amor. O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos pontos de macumba, com atabaques e tudo o mais'. O fato é que, por alguma estranha razão, ligada talvez ao inusitado da situação (quem sabe talvez o fato de ter sido um desconhecido ‘estrangeiro’ de Oswaldo Cruz, o verdadeiro introdutor do Samba, no tradicionalíssimo reduto da ‘Estação Primeira’), nossos estudiosos acabaram deixando sugeridas na biografia de um Eloy ainda mal saído da adolescência, qualidades que ele evidentemente só iria ter muitos anos depois.

A precocidade de Eloy (a quem também Nei Lopes, de certo modo, atribui a introdução do samba na Mangueira, sob a forma de rodas de Batucada e de Pernada) e de outros grandes mestres do Samba, era bastante comum naquela época, quando os conceitos adolescência ou juventude eram um tanto diferentes do que são nos dias de hoje. Mesmo neste caso há de se convir, no entanto que, se referindo àquela ocasião, os dotes posteriormente atribuídos a Mano Eloy eram certamente exagerados.

---------------------------Deu até no 'Fantástico': O Quintal e a Sala da Tia Ciata

O outro aspecto, este mais instigante ainda, é que, se é fato realmente que na Mangueira de 1910 não havia ainda algo que se parecesse com o ‘Samba de Partido Alto’ trazido por Eloy (fato que explicaria a surpresa do menino Carlos Cachaça) a enfática afirmação da maioria dos estudiosos de que o Samba nasceu na Praça Onze, nos quintais das tais ‘Tias Bahianas’, pode não passar mesmo de um mito, um episódio exagerado pela bibliografia. Se as adjacências da Praça Onze fossem realmente o lugar onde se localizava o ‘berço do Samba’, porque cargas d’água o Morro da Mangueira, tão perto dali, seria o último a saber, o único reduto a não participar da construção desta grande novidade que, em 1910 já deveria estar em franca e notória gestação? Talvez tenha sido porque o que se irradiava da Cidade Nova para o Morro da Mangueira, não era ainda, definitivamente, Samba, e sim Rancho Carnavalesco. É o que se pode deduzir pela lógica dos fatos, principalmente se destacarmos o emblemático detalhe da reunião na qual Eloy cantou o seu seminal Partido Alto, ter ocorrido, exatamente, na sede de um rancho, o ‘Pérolas do Egito’.Pelo visto, era mesmo das bandas do Estácio e, principalmente, da roça de Oswaldo Cruz e adjacências (Morro da Serrinha) que chegavam os novos ingredientes, para engrossar o caldo do Samba que a esta altura, já estava borbulhando, quase no ponto, ali por volta de 1910 / 20. De todo modo, mesmo sem se saber exatamente quem influenciava quem, a lista de precursores, Pais e Mães do Samba na época, pode ser bem mais extensa – e variada - do que aparece na bibliografia oficial:...'De todas as tias, a mais famosa e a mais importante foi Tia Ciata (...) em cuja casa os pesquisadores asseguram ter nascido o samba carioca. Seu verdadeiro nome era Hilária Batista de Almeida, uma mulata muito bonita, que chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1870, com 20 anos de idade. Instalada no Rio, Tia Ciata passou a ganhar a vida com um tabuleiro de quitutes baianos na rua Sete de Setembro.'Talvez seja mais razoável se deduzir, portanto, que sendo a palavra Samba, por esta ocasião, talvez uma forma ainda genérica para se designar ‘Chulas de negro’ ou, simplesmente ‘Música de negro’, o que fermentava no quintal da Tia Ciata na verdade – e eventualmente chegava até no Morro da Mangueira, sem atrair muito a atenção do povo de lá - não era exatamente o Samba definitivo mas sim, uma das muitas formas de Samba que pipocando aqui e ali na cidade, disputavam uma hegemonia que estava para se cristalizar a qualquer momento. O tal ‘berço do Samba’ poderia estar aquela altura, em qualquer lugar. Não havia uma estrela guia apontando para a 'Cidade Nova', como muitos especialistas em Samba insistiram em afirmar. Contudo, embora sendo um exagero muito oportuno e providencial, pode não ter sido tão gratuita assim a eleição da área da atual Praça Onze, por parte de nossos intelectuais, como o berço oficial do Samba. Nas primeiras décadas do século 20 (num fluxo que, se inicia na segunda metade do século anterior) o lugar já se configurara como uma verdadeira colônia bahiana, congregando emigrados de diversos tipos, inclusive personalidades do candomblé e até mesmo alguns alufás maometanos, mal vistos em Salvador desde os tempos da última revolta dos Malês.

Situada ali, bem perto do centro da cidade propriamente dita, do centro mundano incrementado pela recente criação do boulevard parisiense que era a Avenida Central, no qual se situavam os ‘points’ da intelectualidade carioca, esta colônia bahiana se prestava maravilhosamente bem – embora de forma simplista – como representação simbólica, uma espécie de microcosmo da cultura típica – idealizada - dos negros africanos na capital federal. Ao que tudo indica, no entanto, a julgar pelo que nos demonstram certos antecedentes da história do Samba, este pessoal da Bahia estava muito mais ligado mesmo é na afirmação por aqui, de suas próprias tradições culturais, trazidas do nordeste, entre as quais preponderavam o candomblé e os Ranchos (Pastoris ou Lapinhas), principal paixão cultural destes bahianos. '... Carlos Cachaça não guardou na memória o ano em que ouviu samba pela primeira vez em Mangueira, lembrando-se apenas de que foi no tempo do Rancho Pérolas do Egito, tudo indicando, portanto, ter sido antes de 1910. Mas não se esqueceu das circunstâncias em que o fato se deu... 'Aliás, pode se considerar por isto mesmo – e com certa propriedade até - que, ao que parece, houve uma curiosa subestimação – ou mesmo omissão - do caráter essencialmente lusitano da herança cultural trazida por estes grupos de bahianos para a Corte do Rio de Janeiro, herança que possui traços muito evidentes na cultura primordial do Morro da Mangueira, como bem nos demonstra o ambiente encontrado por Mano Elói, nos idos de 1910, quando lá introduziu o gosto pelo chamado Samba de fato. A implantação destas tradições luso-bahianas no âmbito da cultura urbana do Rio de Janeiro foi, inclusive, o motivo de muitas disputas e demandas internas, entre os principais líderes desta colônia nordestina, das quais a mais empolgante talvez tenha sido a que poderia ser chamada de A demanda dos Hilários, desentendimento ocorrido entre Hilária Batista de Almeida, a famosa Tia Ciata e Hilário Jovino Ferreira, segundo dizem o introdutor do Rancho no carnaval carioca, na disputa pela criação de um destes grupos. A referida disputa, de certo modo, separou os bahianos em duas facções rivais: A da Cidade Nova (Tia Ciata) e da Gamboa (Hilário Jovino) Além da eventual opção preferencial pelo Rancho Carnavalesco, a julgar por algumas entrelinhas, contidas nos muitos relatos existentes sobre o assunto, o tipo de Samba praticado na casa da Tia Ciata – a bem da verdade um reduto de certa elite negra, composta por geniais músicos e compositores profissionais, além de funcionários públicos bem sucedidos (o marido de Ciata, o médico João Batista da Silva, era chefe de gabinete do chefe de polícia do Governo de Wenceslau Braz) talvez fosse uma forma de Samba um tanto esnobe, impregnada ainda dos maneirismos estéticos dos diversos gêneros de música européia que andaram em voga no fim do Império, tais como o Schotisches, a Polka e a Mazurka.'Embora fosse daquela mesma geração, Pixinguinha não era exatamente um homem de Samba. Ele próprio contou que, nas festas descritas por Donga, não ia para o quintal: _ ’Eles (os sambistas) faziam seus sambas lá no quintal e eu os meus choros na sala de visitas. As vezes eu ia no terreiro fazer um contracanto com a flauta mas não entendia nada de samba’. No mesmo artigo, Sérgio Cabral comenta também que, um tal de Marinho que Toca, um cavaquinista, foi quem ensinou Donga a batida do Samba (provavelmente numa das festas na casa de Ciata), ou seja, já naquela altura, do mesmo modo que Pixinguinha, seu companheiro no grupo ‘Os Oito Batutas’, Donga também não era ainda muito chegado ao ritmo do qual, logo depois, seria incensado como o suposto ‘inventor’ (pelo menos em gravações) .

O que se fazia na casa da Tia Ciata, portanto, era certo tipo de samba negro sim, mas, de certo modo, um tanto ‘aculturado’, que já fora chamado antes de ‘Lundu’ e tentava agora descolar de si o nome de ‘Maxixe’, com o qual a mídia da época já ameaçava batizá-lo de vez, uma espécie de ‘Bossa Nova da Belle Èpoque’, em suma. O que se pode afirmar com certeza é que a receita de Samba tentada na casa da Tia Ciata, foi uma experiência de fusão musical que, pelo menos como Samba, não vingou. A receita que o caldeirão não conseguiu cozinhar (ou o cozido que não apeteceu a negrada, ao ‘populacho’); uma forma de Samba que, não prevalecendo, foi se diluindo, amarelando com o tempo, abafada pela batucada avassaladora que o povo negro da Roça, liderado pelo enorme poder de sedução e persuasão de figuras como Eloy Anthero, veio trazendo para as ruas da antiga Corte. Ao que nos parece, portanto, o Samba definitivo, aquele que emergindo por volta de 1920, se apossa rapidamente da cidade, só começa a tomar forma mesmo, quando o Jongo e outros ‘batuques’ instalados nas roças atrasadas da periferia, começam a se espalhar, como água pura - via cais do porto talvez - por esta cidade já irremediavelmente partida ao meio por uma imensa e simbólica ‘Avenida Central’ que, separando a população entre ‘brancos’ e ‘crioulos’; remediados e desvalidos, parte também nossa música popular urbana em duas vertentes culturais quase inconciliáveis, que só se encontrariam para desfilar no Carnaval.

Reproduz-se assim, como num samba enredo improvável, o quadro de intenso apartheid que havia sido instalado na cidade do Rio de Janeiro por seu prefeito, o ‘smart’ Pereira Passos, em 1906. Por este viés, pode-se compreender também, e com maior rigor e clareza, a natureza de uma certa polêmica que opunha de um lado, o 'samba' ‘Pelo Telefone' (aquele filho dileto do ‘Maxixe’) e de outro, o ‘Samba de Partido Alto’ (o filho legítimo da ‘Chula Raiada') aquele que enfim, logo em seguida, açambarcaria de vez o título de Samba de fato.

Num definitivo depoimento divulgado no livro de Muniz Sodré ‘ Samba o dono do corpo’, Donga afirma enfático que a melodia de ‘Pelo Telefone’ foi copiada de um tema folclórico, muito popular na ocasião (uma chula, portanto) no qual ele inseriu versos, encomendados ao jornalista Mauro de Almeida. O que conhecemos como o primeiro Samba gravado, não seria portanto nenhuma novidade. Na verdade nem o nome de 'composição' original mereceria porque, não passava de uma simples paródia (coisa que aliás, segundo o mesmo Donga, era bastante comum naquela ocasião). Podemos deduzir então que “Pelo Telefone’, era uma chula-paródia, em ritmo de Maxixe que, algum esperto produtor (Fred Figner, da Casa Edison ou o próprio Donga), detectando o grande apelo comercial da palavra, resolveu batizar de ‘Samba’. É sintomático inclusive que, começando provavelmente a ser elaborado em 1910, este ’Samba de fato’ tenha tido que esperar quase 20 anos mais para ocupar, no carnaval, o lugar que as marchas, lundus e maxixes ocuparam, durante as duas primeiras décadas do século 20.'...O primeiro rancho carnavalesco em Mangueira chamava-se Pérolas do Egito, criado antes de 1910, ano em que surgiram o Guerreiro da Montanha e um outro cujo nome Carlos ('Cachaça') esqueceu, mas que teria sido formado pelos moradores do alto do morro. Mais tarde, nasceu o Príncipe da Floresta, o mais famoso rancho de Mangueira, que adotou as cores verde e rosa.

Os negros Mangueirenses, no mesmo momento em que tentavam forjar a difícil mistura entre seus candomblés e macumbas com as dolentes marchinhas das Lapinhas, dos Pastoris e dos Ranchos dos lusitanos, devem ter ficado mesmo encantados com a astúcia e a picardia africana, angolana, contida nos ‘Sambas de Partido Alto’ trazidos por Mano Eloy. Segundo alguns autores, foi neste exato momento, quase em 1910, que eles, os Mangueirenses (junto com o pessoal da vizinha Praça Onze), foram irremediavelmente contaminados pelo vírus daquele Samba jongado que vinha da Roça ‘atrasada’. Nascia o Samba de Fato. Seu berço? Alguma fazenda de café do Vale do rio Paraíba do Sul, provavelmente. Ou, quem sabe? Algum pátio de aldeia, próximo à Luanda, Angola. De certo apenas isto: O nosso velho Samba não nasceu na Praça Onze

...E muito menos na Bahia.

Spírito Santo


Grupo Vissungo, Aniceto do Imperio e Clementina


O texto do Spirito Santo tornou-se um documento, um relato interessantissimo de um periodo meio obscuro da MPB por isto esta sendo postado, pois jongo, partidos, mercado fonografico, cultura negra, ditadura, modernidade, musica africana real, Aniceto do Imperio, Clmentina de Jesus - o samba tradicional esta incluso no processo do relato.


Música Popular Preta e MPB branca


Em 1975, em plenos anos de chumbo, foi criado no Rio de Janeiro um conjunto musical chamado Grupo Vissungo. Em 1974, ainda sem nome definido, o grupo teve como antecedentes o trabalho do trio formado por Antônio José do Espírito Santo (vocais, violão e percussão), seu irmão Luiz Antônio – Lula - (contrabaixo, bandolim, cavaquinho e vocal) e Roosevelt da Silva (Violão). É já desta fase a adoção do principal elemento da proposta do grupo, aquele que o caracteriza definitivamente: a pesquisa da cultura negra do Brasil, e a tentativa de construir, a partir desta pesquisa, um conceito de música negra brasileira moderna, coisa impensável naquela época contraditória, onde a onda vanguardista da MPB não chegava até a cozinha da tradicionalíssima música negra, espécie de ‘reserva técnica’ do folclore nacional.

A idéia ‘contraculturalista’ de uma música negra ‘pop’, era eletrizante para o clima de resistência cultural contra a ditadura, que impulsionava a juventude artística, muito criativa e atuante da época, rumo ao mergulho de cabeça na experiência pop-vanguardista-nacionalista que foi o ‘Tropicalismo’.

Mas havia também a não menos profunda busca da sutil modernidade contida na música do ‘Brasil profundo’, pesquisa inaugurada pelo fabuloso Quinteto Violado, que fazia uma interessante fusão entre a música tradicional nordestina (como a rica escala afro-ibérica de Asa Branca, de Luiz Gonzaga) com certos aspectos, digamos assim, mais avançados da chamada moderna música popular brasileira (expressos na obra de Edu Lobo , por exemplo), com elementos de jazz e música semi-erudita, num caldeirão de muita inventividade e desprendimento.

O nome do Grupo Vissungo, no contexto desta proposta, foi extraído então da expressão ‘Vissungo’ (‘Ocisungo’, hino ou canção no idioma Umbundo de Angola) que denominava cantos de trabalho da região do garimpo de ouro e diamantes em Diamantina, Minas Gerais, no tempo da escravidão. Esta característica ‘antropológica’ da proposta, em particular, acabou por revelar, de maneira fortuita, uma ligação direta entre os dois irmãos fundadores (Antônio e Lula Espírito Santo) e seu mais remoto passado. Descobriu-se assim, no transcorrer da pesquisa que a família dos dois, pela linha paterna, muito provavelmente, havia sido iniciada por um antepassado vindo de Angola, que havia sido escravo exatamente naquela região e, como tal, poderia ter um dia cantado vissungos. Coisa do destino talvez, gravado como memória genética. Ainda em 1974, já com esta mística proposta definida, o grupo adota, durante um curto espaço de tempo, o nome de ‘Sararamiôlo’, agora formado também, além dos irmãos Espírito Santo (Antônio e Lula), pelos também irmãos Carlos ‘Codó’ Brito (que substitue Roosevelt) e Lena ‘Codó’ Brito (filhos do grande violonista bahiano Clodoaldo Brito, o ‘Codó’). É assim que, agora como um quarteto, durante ensaios do recém construído prédio do DCE da UFF, nasce oficialmente com este nome em 1975, o Grupo Vissungo. É desta fase a criação das bases estético-musicais do trabalho do grupo, representadas pelo casamento entre a pesquisa de campo em comunidades negras do interior do país, e o aprofundamento dos ricos elementos de modernidade eventualmente contidos nas inusitadas escalas desta música tradicional. Este aprofundamento nascia, principalmente, do senso harmônico de Carlos Codó, herdeiro da erudição do violão de Codó pai, professor emérito, desde a Bahia, de muita gente boa, tal como João Gilberto, Caetano Veloso, Egberto Gismonti e Gilberto Gil (com quem o autor chegou a cruzar, entre uma aula e outra, na casa de Codó, no bairro do Estácio, no Rio).

Esta fase é inspirada também nas sugestões apaixonadas do historiador e acadêmico José Maria Nunes Pereira, um especialista em cultura angolana que, já na fase anterior (Sararamiôlo), chamava a atenção do grupo para a enorme beleza da música africana real. Esta fase seminal, culmina com a descoberta, por parte do grupo, da grande similaridade existente entre a cultura negra tradicional do Brasil e o que, em termos musicais, ocorria na África contemporânea - notadamente Angola e Moçambique.

A grande questão neste momento é que, apesar de se estar vivendo uma época (1978) de grande efervescência cultural, musical principalmente, havia muita restrição - e até um certo desprezo- por parte do meio musical em geral (e do mercado fonográfico em particular), por abordagens artísticas voltadas, diretamente e de forma mais aprofundada, para a cultura negra. Tolerava-se o Samba convencional e algumas poucas propostas de forma genérica denominadas ‘Música Afro’, geralmente adaptações de pontos religiosos tradicionais, extraídos do Candomblé e da Umbanda. No âmbito da música essencialmente afro-brasileira, dominada por um purismo exacerbado, a modernidade era, portanto, rigorosamente, um conceito tabu. A releitura criativa, a experimentação e, principalmente, a utilização livre de instrumentos ‘acústicos’, convencionais, misturados com instrumentos eletrônicos, como contrabaixo e guitarra por exemplo – marcas essenciais da proposta do Vissungo - já inseridos em outros gêneros musicais desde o final da década de 60 (onde pontificou o ícone “Alegria, alegria”, com Caetano Velloso e Os Mutantes) não eram, estranhamente, bem tolerados nas poucas bandas e grupos de música negra existentes. Este comportamento conservador do meio musical, de certo modo, forçou o Grupo Vissungo a participar, de forma militante, no chamado Movimento Negro, tornando-se uma espécie de símbolo musical da luta antiracista carioca naquele momento. No entanto, do ponto de vista de suas preferências culturais, havia uma curiosa contradição se instalando no seio deste movimento negro emergente que, embora firmemente interessado na erradicação do racismo no Brasil, passava a subestimar - ou mesmo ignorar - em suas estratégias e políticas, as eventuais lições advindas da luta anti-colonialista, ainda em curso em Angola e Moçambique, para exercer no âmbito externo, uma atração política, de certo modo exagerada, imitativa e acrítica, pela cultura negra norte americana, notadamente, a chamada Black Music, trilha sonora essencial da luta dos Panteras Negras e do neo islamismo de Malcom X.

Neste mesmo sentido, no plano interno, tornando suas opções culturais desta vez francamente elitistas, este Movimento Negro passou também a privilegiar uma cultura negra idealizada e, de certo modo oficializada já que, referendada por teses de mestrado de eminentes etnólogos, privilegiava muito mais o Candomblé bahiano e produtos sucedâneos, em detrimento da música negra de Minas Gerais, São Paulo e do próprio Rio de Janeiro (para ficar só nos exemplos da região Sudeste) música oriunda das colônias e ex-colônias de língua portuguesa que mandaram escravos em maior número para o Brasil, exatamente a vertente para a qual, por coerência artística, o Grupo Vissungo se voltava nesta época.

São estas contradições culturais que, afetando o mercado musical de um lado e o Movimento Negro de outro, introduzem o Grupo Vissungo numa crise de identidade que o leva a se afastar um pouco de sua proposta artística original, de vanguarda, interessado em contribuir na superação desta contradição que ameaçava afastar – como por fim afastou- o Movimento Negro brasileiro de suas bases populares mais evidentes.

-----------------Aniceto e Clementina, cadê vocês?

É ainda na tentativa de superar estas limitações ‘de mercado’ que o Vissungo radicaliza seu mergulho nos meandros da música negra tradicional, se ligando á figuras essenciais como Clementina de Jesus (por impulsão da Fundação Cultural de Curitiba, dirigida á época por Jaime Lerner, que nos une à Clementina num show antológico no Teatro Paiol) e João do Valle, ícones da década anterior, lançados nos shows ‘Opinião’ e ‘Rosa de Ouro’, mas, de novo caídos no limbo do esquecimento, fora do mercado. Neste mesmo sentido, um pouco mais tarde, o grupo se liga profundamente a Aniceto do Império Serrano, figura histórica do samba carioca mais profundo (um dos maiores especialistas em Partido Alto), relegado ao total ostracismo na ocasião e grande influência no trabalho do grupo a partir de então. A fase se caracteriza também pelo aprofundamento, por parte do grupo, de sua pesquisa de campo, exercendo de forma militante a difusão da música africana, principalmente angolana, não só em seus aspectos originais, como também em sua expressão afro-brasileira, principalmente, o Jongo e a Congada. A experiência, flagrada pela revista Cadernos do Terceiro Mundo, editada por asilados brasileiros no México e distribuída mundialmente, deu ao Grupo o status de boa referência neste campo, não só em seu viés, francamente, antropológico, como em sua opção pela difusão de aspectos da cultura popular do interior do Brasil que viviam, solenemente, esquecidos nos grotões. O radicalismo desta fase, acentuando a crise de identidade, provocou um racha no grupo e a posterior dispersão de alguns de seus membros originais – entre os quais Lula Espírito Santo - que decidiram tentar penetrar no mercado sob a forma de grupo de Samba convencional.

Sobrevém uma fase de muito engajamento e alguma incerteza artística, com a adesão de músicos amadores, de diversas procedências, compondo formações apenas adequadas, a um repertório onde predominava a música negra tradicional do interior da região sudeste do Brasil. As fusões mais recorrentes eram entre a música tradicional de Minas Gerais, e canções revolucionárias de colônias, como Angola, Guiné Bissau e Moçambique, que promoviam uma sangrenta guerra de libertação contra a metrópole portuguesa. Pontificavam no repertório, letras do poeta Agostinho Neto, musicadas por Rui Mingas, ambos angolanos e de José Carlos Schwartz, compositor e guerrilheiro guineense, gravado em disco produzido por Miriam Makeba.

Por vias transversas no entanto, esta fase (meados da década de 80) foi muito bem sucedida pois representou enfim, o ingresso do Vissungo no mercado fonográfico, a partir da autoria, junto com Wagner Tiso (e a voz de Milton Nascimento) da premiada trilha sonora do filme Chico Rei de Walter Lima Júnior. O disco gravado pela Som Livre - único da carreira do Grupo Vissungo até hoje- contém entre outras pérolas, o último registro em estúdio da voz de Clementina de Jesus, cantando a introdução da música Xico Reyna (de Espírito Santo e Samuka). ...”O épico Chico Rei deu continuidade ao projeto de um cinema histórico mais atento às elaborações mitológicas que ao rigor das versões acabadas. Lima Jr. usa a história do primeiro escravo a se tornar dono de ouro no Brasil para investigar as suas próprias raízes negras. O Grupo Vissungo, em sua fusão de arte e militância, teve papel decisivo na formatação sonora do filme, que ainda mobilizou ícones da música negra brasileira como Milton Nascimento, Clementina de Jesus, Naná Vasconcelos e Geraldo Filme. “Trecho do artigo “um cinema que quer ser música” de Carlos Alberto Mattos Publicado na revista Veredas (CCBB/Rio, Nov-2000) Seguiram-se a participação do grupo nos discos de carreira de Milton Nascimento (‘Encontros e despedidas’), Wagner Tiso (‘Branco & Preto/Preto & Branco’) e Tetê Espíndola (‘Gaiola’).

A crise de identidade do Vissungo, no entanto, prossegue pois, a vocação original do grupo na busca da modernidade artística (interrompida no início da década), só poderia ser retomada, se contasse com novos músicos com talento, experiência e vontade para encarar os novos desafios musicais que, desta feita, seriam marcados pela busca de um formato, ao mesmo tempo, moderno e popular, de preferência dançante, tendência que passava a predominar na música urbana do mundo inteiro naquela época (época do boom da indefectível ‘Lambada’).

O grupo é por fim muito bem sucedido nesta fase, encontrando com sua nova formação, composta por Espírito Santo (vocal solo e percussão), os retornados Lula Espírito Santo (baixo e vocal) e Carlos Codó (violão), além de Samuka, José Maria Flores (bateria) e Braz Oliveira (Guitarra) uma sonoridade muito aproximada do que buscava desde sua origem.

-------------Dançando no ONU Center Wien

Em 1989, com esta nova formação, o Vissungo faz então sua primeira viagem á Europa, realizando uma das melhores experiências de sua carreira no show na sede européia da ONU em Viena, em benefício da Unicef para uma platéia totalmente composta por africanos, de todas as partes do continente, que dançavam, cada qual ao jeito de seu país, aquela mistura de música brasileira, guineense e moçambicana que o Vissungo apresentava. A forte energia produzida pela curta, porém, intensa primeira experiência do Vissungo na Europa, não encontra, no entanto, grande respaldo com o retorno do Grupo ao Brasil. Envolvido em mais um de seus equívocos eleitorais o povo brasileiro acabara de eleger para presidente, o aventureiro populista Fernando Collor de Mello que, após uma série de ameaças ás ‘elites’, interrompia a maioria das iniciativas governamentais voltadas para o fomento da cultura. O intempestivo ato do ‘caçador de Marajás’, inviabilizava o trabalho de vários artistas e, praticamente, determinou a interrupção das atividades do Grupo Vissungo, que negociava com contatos da Funarte da época, a gravação de seu primeiro disco solo. É quando surge o irrecusável convite do sociólogo italiano Tulio Aymone, da Facoltá de Economia de Modena, para que o Vissungo, a princípio representado por apenas dois de seus membros, Espírito Santo e Samuka, se apresentasse no Festival Internacional de Cultura do jornal do Partido Comunista italiano L’Unitá”, em Bologna. Foi assim que o Grupo Vissungo, cansado de guerra, decidiu, numa espécie de exílio voluntário, transferir-se de mala e cuia para a Europa. A carreira européia do Vissungo se reinicia em julho de 1990, com a ida da dupla para Modena, Itália, afim de cumprir um contato para uma tournée de um espetáculo de música negra e dança afro-brasileira tradicional, cuja renda seria, em parte, revertida para a vinda do restante da banda. Artisticamente muito bem sucedida, a tournée pelo norte da Itália - Modena, Bologna, Reggio Emília, Corregio, Carpi, Ímola, etc.- área na qual as tropas brasileiras combateram na 2a Guerra Mundial (o soldado José Cyrilo, pai dos irmãos Espírito Santo, entre elas), infelizmente, não teve uma renda suficiente para bancar o sonhado resgate dos membros da banda que ficaram no Brasil. Transferindo-se para Viena, Áustria, após os quatro meses em que durou a experiência italiana, o Vissungo foi enfim recomposto com músicos locais, entre os quais o excelente guitarrista vienense Claudius Jelinek, o baixista uruguaio Pablo Solanas, o percussionista senegalês Jimmy Wolof e os brasileiros Ita Moreno (violonista) e Tatá Cavalcanti (baterista).

-----------------Vissungo afro beat

Durando cerca de três anos, a carreira européia do Vissungo, representou, como o fim de um ciclo, a realização do sonho original contido na proposta inicial do grupo, por uma música negra brasileira moderna, na qual não se abrisse mão daquelas raízes africanas mais profundas, proposta tão penosamente buscada no Brasil e enfim encontrada viva e pujante no mercado musical europeu, no qual o conceito mais moderno de música popular é aquele realizado pela maravilhosa fusão de ritmos africanos das colônias (Guiné, Senegal, Nigéria, Gana, etc.), com a música negra norte americana (Soul, Funk), conceito fundado pelo grande músico nigeriano Fela Kuti, e conhecido na África e na Europa genericamente como ‘Afro-beat’.

O resultado deste feliz, embora tardio, encontro do Grupo Vissungo com os sons africanos que lhe eram similares ou irmãos, pode ser felizmente mostrado em seu retorno definitivo ao Brasil em 5 de Novembro de 1996, num inesquecível espetáculo na Sala Cecília Meirelles, em comemoração ao mês de Zumbi de Palmares. Para a nova formação do grupo, os dois únicos remanescentes da formação original (os irmãos Antônio e Lula) recorreram a uma incrível fonte musical, de existência inpensável na década anterior: Um núcleo de jovens músicos negros, com experiência em música pop adquirida em sua dedicação militante à reggae Music, congregados no Centro Cultural Donana, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, inegável foco da posterior ascenção do reggae no mercado pop brasileiro, com o KMD5 (banda depois rebatizada como Negril) e o Cidade Negra (antes liderada pelo polêmico Ras Bernardo). Desta fonte maravilhosa e revigorante, foram arregimentados Lauro 'Biko' Farias, baixo (logo em seguida 'roubado' pelo O Rappa), Reinaldo Amancio (logo em seguida integrando o 'Cabeça de Nego'), além do fabuloso batera Jahir Soares, decano do reggae raiz carioca até os dias de hoje. Integraram também o Vissungo, neste seu último espetáculo, Welington Coelho (depois do Farofa Carioca) e Paulão Menezes (ainda hoje percussionista da banda de Bia Bedran) Ali, diante de uma platéia entre surpresa e extasiada com a diferença gritante entre o som que o grupo trouxe da Europa e os sons da comedida música negra em voga no Brasil (onde o Reggae começava a pontificar), o Grupo Vissungo decidiu se recolher a sua significância, sabe-se lá até quando.

----------------Esta matéria, sendo sobre música, deveria conter um arquivo de áudio com o som do Vissungo.

Falha da época: Além do LP do disco com a trilha sonora do filme Chico Rey (talvez ainda não lançado em CD) e de faixas há pouco tempo inseridas num remix (este sim, em CD) do disco de Clementina de Jesus ‘Canto dos Escravos’, existe muito material gravado pelo Grupo Vissungo, espalhado por aí, em mídias diversas (a maioria deste material, está em suportes considerados hoje obsoletos, tais como fitas K7 e fitas VHS). O acervo do grupo (centenas de horas de registros de áudio em fitas K7, negativos P&B e slides fotográficos) fruto de suas pesquisas de campo, até hoje razoavelmente conservado, contém também interessantes registros de shows e ensaios, no Brasil e no exterior, aguardando digitalização, missão sobre a qual, alguém terá que se debruçar um dia. Legítimo produto artístico da inesquecível década de 70 do século 20, o Grupo Vissungo pode ser visto hoje, distanciadamente, como uma espécie de símbolo natural da privação de acesso ao mercado – e aos meios de produção e registro mais elementares - sofrida por determinados artistas e grupos musicais brasileiros, antes do formidável advento desta atordoante revolução das mídias modernas, e seus meios e suportes democratizados (ou banalizados) como nunca o foram na história. Empávido, umas vezes aos trancos e barrancos, outras gloriosamente, o Vissungo durou 20 anos. Sobreviveu muito bem aos desafios de seu tempo. Na verdade, tendo sido de algum modo registrado, gravado, nem mesmo pode ser declarado clinicamente morto, ainda.Como vinho envelhecido, ele está ainda adormecido numa adega destas da vida, num quintal destes do mundo onde, brasa dormida, até hoje pulsam suas emoções, passíveis de serem digitalizadas, eternizadas, se tornando, portanto, imortais.


Eu pelo menos, um dos Espírito Santo desta história, continuo vivinho da Silva.

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'A véia preta tem cinco fio

os cinco fio do mesmo pai

na meia noiteo pai tá sumido

véia pregunta pros cinco fio:

menino preto, cadê teu pai?

'Jongo do Vissungo

Spirito Santo


Setembro 2007