quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Beth Carvalho e Nelson Cavaquinho e outros assuntos

Nelson Cavquinho - História por Leon Hirszmann:
http://www.youtube.com/watch?v=xiOrYaoXOw0


domingo, 7 de outubro de 2012

Candeia -

Entrevista com Joao Baptista Vargens.












quarta-feira, 7 de setembro de 2011

As manifestações que deram origem ao Samba Urbano



A MODINHA E O LUNDU NO BRASIL


As primeiras manifestações da música popular urbana no Brasil 

EDILSON VICENTE DE LIMA

                Com crescimento populacional que vinha se acentuando desde o início do século XVIII e a formação de centros urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo tipo de entretenimento por parte de uma classe média emergente era condição imperiosa para a
manutenção de um modelo de cultura que a metrópole, no caso Portugal, vinha impondo à colônia.
              Antes dos concertos públicos, que só viriam a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery, 1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto
na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII; as festas profanas, tais como aniversários de cidades, membros da família real ou alguma figura importante pertencente à classe dominante; as festas religiosas, que também tinham funções sociais.
                Uma outra forma de entretenimento que vinha sendo praticada no Brasil desde meados do século XVIII era a música patrocinada por proprietários de posses, que mantinham orquestra formada por escravos negros especialmente treinados para executarem os mais diversos instrumentos (violinos, viola, teclado, charamelas, dentre outros).
               As músicas que interpretavam eram os sucessos europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).
Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados e para convidados especiais.
               Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por conseguinte, de divulgação da música cultivada pela classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde
músicos amadores e profissionais podiam se irmanar, tocando ou cantando suas peças preferidas.
Era também a oportunidade para as moças das finas famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua
encantadora voz acompanhada pela delicadeza do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).
Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência, pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos
europeus vindos para o Brasil.
             O negro, por sua vez e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou
a música, seja em sua forma ritualística longe dos olhos ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças públicas. Desta forma, sem querer adentrar as discussões sociológicas quanto às condições sociais
das diversas camadas que residiam no Brasil em meados do século XVIII, ainda que altamente
europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo seu próprio caminho musical à medida que as vilas
se desenvolviam.
É nesse ambiente e condições sociais que, nos últimos anos do século XVIII, surge a modinha,
um tipo especial de canção que será cultivada tanto em Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de
canção lírica, singela e de duração reduzida, composta para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra
ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornar-se, pouco a pouco, um veículo para a expressividade musical, tanto portuguesa quanto brasileira.
             As discussões pela definição da paternidade da modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas pátrias como filha legítima. Mais do que o local de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma determinada nação que definem uma nacionalidade.
Porém, a origem da modinha está intimamente relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,
que em meados do século XVIII, designava, genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada
nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas (Araújo, 1963).
                No Brasil, a palavra moda assume duas acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).
Ao absorver dessa última as características formais e melódicas, a modinha se configura de maneira muito
rica, não assumindo uma forma específica.
Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.
Mário de Andrade, no texto introdutório de sua antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,
defende que o diminutivo “modinha” está intimamente relacionado com as características “acarinhantes” tão
presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980).
Esta característica, por sua vez, é descrita com muita graça no refrão da modinha “Quando a gente está com
a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou em Lisboa entre o século XVIII e XIX:
“Nós, lá no Brasil,
com nossa ternura/
Açúcar nos sobe com tanta doçura/
Já fui à Bahia, já passei no mar,/
Coisinhas que vi me fazem babar”.

              No final do setecentos, literatos e cronistas portugueses diferenciavam a modinha portuguesa
da brasileira e atribuíam a esta características próprias advindas da colônia, no caso, o Brasil.
O pesquisador português Manuel Morais descreve algumas delas:
melodia ondulante, cromatismos melódicos e acompanhamento singelo (Morais, 2000).
Poderíamos acrescentar: melodias entrecortadas e compostas de motivos sincopados, ora em retardo, ora em antecipação, abuso de cadências femininas, porém, sempre primando por uma certa delicadeza (Lima, 2001).
               O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,
que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa (Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que
considera característicos do estilo brasileiro e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois poemas utilizados nas modinhas desta coleção como sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens
errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre, também conhecido pelo nome árcade de Lereno
Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio improvisador e, naturalmente, tangia sua própria
viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu no último quartel do século XVIII até sua morte.
Tornou-se muito popular na corte por sua atuação como poeta e cantor de modinhas.
Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas
e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813. Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa utilizou em seus poemas e que muito se assemelham ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito Modinhas do Brasil acima citado: neologismos afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;
também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas
nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande
sucesso no período em que viveu na corte onde era muito comum apresentar-se acompanhado por sua
viola e cantando modinhas.
              Com base na análise poético-musical efetuada no manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas Barbosa, Béhague sugere que, se não todas as modinhas da coleção, grande parte delas é de Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características musicais consideradas brasileiras presentes em muitas
modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase sincopada, que no caso dessas peças, aparece
totalmente incorporada ao estilo musical, indicando uma prática adquirida naturalmente, ou seja,
pela convivência, e não pelo resultado de estudos técnico-analíticos.
             No estágio em que se encontram as pesquisas sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto
em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos Caldas Barbosa musicados por compositores de
renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830), compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil
em 1811 e aqui permaneceu até sua morte; e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico
português de renome em Lisboa no final do século XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas
modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura do compositor da melodia, porém é muito provável
que Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”, e por isso não tivesse o hábito de assinar suas
composições, pois consta que não era iniciado nos cânones musicais (Sandroni, 2001).
              Fato é que, na documentação pesquisada até o presente momento, há uma grande quantidade
de modinhas que se destacam por possuir uma musicalidade muito própria: melodias sinuosas de
poucos compassos e compostas por pequenos motivos, a presença da síncopa melódica, o acompanhamento
em arpejos de quatro colcheias, parafraseando as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto
nestas características pois elas serão associadas  ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros
como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).
             Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil é de fundamental importância, pois, das trinta modinhas que compõem a coleção, várias trazem marcadamente estas características (Lima, 2001).
Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileira se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,
com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida pelos portugueses e todas as influências italianas
incorporadas no decorrer do século XVIII; mas, certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta
em várias modinhas desse manuscrito, associada ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere
a elas um caráter muito particular, antecipando em aproximadamente um século as características musicais
que vão ser associadas ao choro, ao maxixe e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.
A partir dessas afirmações, podemos concluir que, apesar de nossa dependência política, certas
características musicais e poéticas reputadas ao Brasil, inclusive por portugueses já no último quartel do
setecentos, apontam para um direcionamento próprio, pelo menos no que tange à produção musical.
                Neste momento não podemos deixar de falar do lundu, dança popular brasileira introduzida
no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos, muito popular em meados do século XVIII (Andrade,
1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança já como um resultado da confluência de elementos
da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada por negros e mestiços no decorrer do século XVIII
e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores
poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas, atestando ainda mais a sua popularidade na época.
O lundu era dançado, tendo como acompanhamento o batuque dos negros e instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se popular por seus elementos coreográficos: a famosa umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).
                A convivência entre negros livres e cativos, a classe média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas
musicais da recatada modinha, dando origem ao lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas
modinhas quase lundus, como destaca Mozart de Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos da cultura da classe média européia e da cultura popular afro-brasileira.
              É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado, já no século XVIII, em espetáculos para divertir
cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,
apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,
mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado, e, certamente, influenciou músicos e poetas que não
poderiam ficar imunes aos seus feitiços.
               Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção, doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário simples, predominância da tonalidade maior, linha melódica sincopada e geralmente composta por fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com
relação ao texto, há predominância do uso da quadra com versos em redondilha maior e uso de refrão
(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência
para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).
               No século XIX, encontramos lundus estilizados, escritos em compasso binário composto, antecipando, ou já dentro de uma tradição romântica.
                Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se verdadeiros meios da expressividade musical tanto popular quanto erudita. Foi cultivado por músicos como José Maurício e Marcos Portugal; também por Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras décadas do século XX.
                Na vertente popular, serviram de suporte para músicos como Xisto Bahia e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer, de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX, incorporaram-se ao repertório de espetáculos populares e serviram de crônicas à sociedade de então, como no famoso lundu Lá no largo da sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção e aos desmandos econômicos da época.
Finalizando, não obstante a origem aristocrática da modinha, praticada, inicialmente, nos salões cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados, aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila, foi absorvendo características musicais e poéticas das manifestações advindas das classes econômicas menos privilegiadas, irmanando-se ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse caminho rumo a aceitação de todos, ambos, a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último passo para diluir-se na alma!


Discografia


- MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.
- CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989
- COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,
Américantiga, 2003
- MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d
- MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d
- MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997
- MÚSICA DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994
1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d
- HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d
- NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d
- VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d
- 20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm. São Paulo: BIEM, 1998


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, M. de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiania, 1989.
________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1963
BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596: two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”, Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV, 1968.
KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.
_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular brasileira: Movimento, 1977.
LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.
MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: ImprensaNacional – Casa da Moeda, 2000.
NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991.
NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.Lisboa: Movieplay, 1994.
SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.: Ed. UFRJ 2001.
TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo: Art Editora, 1991.



EDILSON VICENTE DE LIMA
Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.
Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.




terça-feira, 15 de setembro de 2009

Samba, MPB - decadencia e brasilidade

O texto cita o samba nas discussões desde os anos 30 sobre a decadencia da musica popular no Brasil. Otimo texto e explanação rápida da historia da musica popular no Brasil. As fotos são capas de disco que achei melhor não copiar, pois bem conhecidas. Vamos lá - texto do professor Celso Branco:

A primeira pergunta, presente em duas composições da Rita Lee (foto) e do imortal Paulo Coelho (Arrombou a festa I e II), lançadas em 1977 (LP Refestança, Som Livre) e 1979 (LP Rita Lee, Som Livre), permanece até hoje sem a resposta que os orgulhosos da cultura brasileira gostariam de obter. Uma resposta para a percepção de contínua decadência da MPB no que se refere à qualidade das composições, dos intérpretes, arranjos e movimentos artísticos, a partir de um momento ainda não muito definido da sua história, mas muito evidente na comparação de estilos dominantes em cada período. Pelo menos é essa a sensação que permeia a análise de especialistas e leigos quando opinam sobre a história desse patrimônio cultural inegável, do qual, por outro lado, ainda muito nos orgulhamos por representar tão bem nossa própria contribuição à civilização. Mas essa sensação de decadência está realmente correta? A música do nosso país, respeitada e até cultuada lá fora, está mesmo em fim de carreira? O quanto dessa afirmação não esconde o conservadorismo saudosista, que faz parte também da nossa brasilidade, e que não admite transformações estruturais repentinas e nem o desvio dos temas considerados já “canônicos” da nossa música?
No final dos anos 1970, a época de sucessos como Bilú Tetéia, Sandra Rosa Madalena, Severina Xique-xique (de Jenival Lacerda, foto ao lado), e outras “pérolas”, como se dizia, do “brega”, a roqueira, manifestava com a sua pergunta a indignação de uma significativa parcela da opinião pública que ainda se lembrava dos Festivais da Canção dos anos 60, e que havia tomado como parâmetros de avaliação aquelas produções absolutamente datadas no passado recente de idealismos coletivos.
Mas, o fim dos 70 e início dos 80 estava por engendrar o fim desses idealismos, pelo menos nos formatos ainda propostos, e por assistir a derrocada de uma série de padrões artísticos, éticos e morais vigentes nas canções da época dos Festivais, por serem então incompatíveis com o novo momento. A “massa”, como comumente os especialistas se referiam ao gosto popular, estava a confirmar sua propensão a um estilo mais simples, mais chulo ou grosseiro, à linguagem direta não elaborada ou de duplo-sentido evidente na pornografia, mas que era também alegre, jocosa, provocadora, ou melhor, carnavalesca, tipicamente brasileira enfim, o que justificava em grande parte o sucesso dos “bregas” e do programa de TV do Chacrinha, o principal promotor desses grandes sucessos populares.
Contudo, sem reconhecer essa identidade, muitos críticos brasileiros dirigiram toda sua força no combate á “breguice”, até o ponto de quase nada mais sobrar em suas análises de verdadeiramente valoroso ou admirável em toda e qualquer nova produção musical brasileira.
Mas quando foi que isso começou?
Acredite se quiser.
Já em 1930, encontramos duras críticas à música popular brasileira e a descrição de um processo de decadência. Luciano Gallet (compositor, regente, folclorista e diretor da revista musical Weco), descontente com os rumos da música brasileira, promoveu neste ano uma campanha de “salvamento” da mesma, que culminou com a fundação da Associação Brasileira de Música. Este mesmo ano, paradoxalmente, será tomado mais tarde como marco do início de uma “época de ouro” da nossa música. Estes fatos nos dão uma amostra do quanto o sentimento de decadência desse patrimônio é antigo e ao mesmo tempo maleável e transitório entre nós.
Mas decadência em relação a que modelo? Conforme Arnaldo Contier, o grande estudioso da identidade nacional brasileira expressa na música popular, os primeiros impulsos para a produção historiográfica sobre a questão da música no Brasil, alimentou-se no seio do modernismo, sobretudo nas obras de Mário de Andrade e Renato de Almeida, ao longo dos anos 20 e 30, e cresceu com o debate sobre o problema da brasilidade, da identidade nacional e dos procedimentos pelos quais deveria ser pesquisada e incorporada a "fala do povo" (e do folclore) aos projetos ligados aos modernismos. Uma parte significativa desses projetos, depois de devidamente filtrados, chegaram mesmo a fazer parte dos planos do primeiro governo Vargas.
É neste momento de exagerados nacionalismos, de escala planetária, que irão se definir os parâmetros da música popular. Traços identificados na música desde finais do século XVIII, quando já podiam ser notadas "certas formas e constâncias brasileiras" no lundu, na modinha e na utilização generalizada da sincope, por exemplo, que já estavam devidamente captados ao paradigma que se queria impor, e ao qual não se encaixavam certas “invencionices” modernistas de última hora.
O que identificamos nessa propaganda da idéia de decadência é a série de mudanças que se operavam nos anos 30 em toda a sociedade brasileira e a resistência a elas de uma parcela da elite intelectual. Foi no início desta década que o samba sofreu as mudanças do padrão rítmico operados pela “turma do Estácio” (Bairro Estácio de Sá, Rio de Janeiro - Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Brancura e outros) e que foram tomadas como sinais da “decadência” iminente. Na verdade, esses mesmos sinais de decadência, ou seja, essa transformação iria marcar definitivamente a batida do samba moderno, formando uma nova escola de sambistas e compositores que nestes mesmos anos 30, tornou-se o modelo definitivo ou paradigma do samba “tradicional”.
Porém, nem perante essa inversão de julgamentos, as críticas que denunciavam a perda constante da qualidade musical iriam arrefecer.
Já em 1940, Carmem Miranda teve que se defender na volta ao Brasil da acusação de negar a brasilidade: “Disseram que eu voltei americanizada” (samba de Luiz Peixoto e Vicente Paiva).
E um ressurgimento vigoroso desse sentimento de decadência será verificado a partir da segunda metade da década de 50, quando a música popular foi tema constante na imprensa brasileira. Mais uma vez a idéia da decadência musical, corrente na historiografia da música brasileira deste período, remete de maneira simplista à idéia de crise. Numa época marcada pelo crescimento da indústria fonográfica e pela multiplicidade de ritmos que tomava conta das rádios, o samba deixava de ser hegemônico e dividia as paradas de sucesso das maiores emissoras de rádio do país com rumbas, jazz, boleros, fox e marchas de Carnaval. É nesse leque de produções estrangeiras ou “de influências estranhas” que muitos viram uma inequívoca decadência da arte musical nacional. Mas esse sentimento, mais uma vez, correspondia à realidade?
Apesar do envelhecimento ou morte de alguns dos ícones dos anos 30 e 40, como Francisco Alves e Carmem Miranda, em meados dos anos 50 muitos artistas de inegável qualidade faziam a sua aparição: Dolores Duran, Antônio Maria, Adoniran Barbosa, Jacob do Bandolim e Ângela Maria são apenas alguns exemplos; a produção voltada para a festa do Carnaval, para citar outros, teve em composições de Haroldo Lobo, Braguinha, Nássara, Wilson Batista e Zé da Zilda, entre tantos (o disco de 78 rpm ao lado, lançado em 1955, de Lamartine Babo, é um grande exemplo de sucesso de vendas), altíssima qualidade neste período; o frevo também obteve destaque, através de Severino Araújo e o baião se consagrava na voz de Luiz Gonzaga entre muitos outros artistas nordestinos; Cartola foi redescoberto por Sérgio Porto e retornou à vida artística; a turma da Velha Guarda, comandada por Pixinguinha, voltou a gravar e fazer shows; e havia lugar para manifestações musicais como o bigorrilho, cultivado por Jorge Veiga, para não falar da rica variedade de sambas, samba de morro, samba de roda, samba de breque, samba-canção, samba-enredo e os “sambas de última hora”, que vinham na boca do povo; a atuação de Almirante nos programas de rádio continuava com grande sucesso, divulgando todo esse rico universo. Mas, ao mesmo tempo, o rádio vinha também elegendo os ícones (o principal do período foi Noel Rosa) que serviriam para identificar os estrangeirismos “deturpadores” do samba e da nossa autenticidade, bem como a “qualidade” do que estava sendo produzido. Ao contrário do que pressupunha a tese dos críticos da música popular deste momento, o cenário musical era muito variado e criativo, sendo ainda o samba o gênero principal. Contudo, por sobre essa profusão pairou pesada, a nuvem dos julgamentos pessimistas que novamente condenavam á música brasileira á decadência.
E assim, apesar de todos os memoráveis acontecimentos ligados à música popular desta década, as opiniões insistentes sobre a decadência do samba acabaram consagrando os anos 50 como período de crise. Em 1954, surgia a Revista da Música Popular, criada por Pérsio de Morais e Lúcio Rangel, que, segundo os pesquisadores Marcos Napolitano e Maria Clara Wasserman, “tinha como projeto formar uma grande rede nacional para discutir e combater a crise na música brasileira e, a partir da conscientização popular, voltar às origens e retomar a tradição, que seria o samba “puro” dos anos 30”. Para a Revista, o samba tradicional estava sendo substituído por ritmos estrangeiros, tais como boleros, xá-xa-xás, tangos, rumbas e o jazz trazido pelas Big Bands. Um artigo escrito para a Revista pelo compositor Ary Barroso (tido como um dos maiores representantes da identidade musical brasileira, como atesta a capa do CD ao lado, numa coletânea lançada em 2000), deixa claro esse pensamento crítico de jornalistas e compositores a respeito do ambiente musical da época, e nos dá eloqüentes argumentos para acreditar na decadência:
1 – Antigamente não havia “gramáticas” em samba. E todos o entendiam.
2 – Antigamente não havia “acordes americanos”
3 – Antigamente não havia “boites”, nem “night clubs”, nem “black tie”. E o samba andava pelos cabarets, humilde e sem dinheiro.
4 – Antigamente não havia “fans-clubs”. Então os cantores cantavam sem barulho um samba sem barulho, vindo da Penha, único barulho era o preparatório para o grande barulho que era o Carnaval.
5 – Antigamente as orquestras não tinham a disciplina militar das bandas, porque eram bandas autênticas sem pretensão à orquestra. Então o samba saía sem pretensão, mas gostoso.
6 – Antigamente o “compositor” não era “compositor”; era um veículo sonoro de suas emoções. Então o samba saía à rua vestido de brasileiro, gingando com as “porta-estandartes” dos ranchos.
7 – Antigamente não havia parceria de cantores, empresários e “veículos” Então o cantor cantava: não impingia!
8 – Antigamente o teatro era palco dos triunfos populares. Então, o samba vinha da Praça Tiradentes para a cidade e depois para o Brasil.
9 – Antigamente samba era uma coisa, hoje é outra...
10 – Decadência! Decadência! Decadência.
Nos dez itens que Ary escreveu com o título de Decadência, o compositor apontava sem escrúpulos os criminosos: a influência americana, as marchas carnavalescas, os fãs clubes e programas de auditório, as orquestrações no samba e todo o procedimento da indústria fonográfica, que a cada dia, “fabricava” artistas e músicas sem qualquer compromisso com a tradição. Os articulistas da Revista argumentavam que depois de 1945 as rádios começaram a importar ritmos vindos da América Central e dos Estados Unidos (filmes musicais produzidos por Hollywood) e que assim, haviam encerrado a época de ouro, cedendo lugar para a fase do internacionalismo e da música comercial.
A tese da decadência não conseguia ver que a música brasileira se mantinha em plena atividade, de forma, aliás, cada vez mais penetrante em todo o território nacional. Além disso, não era verdade que o samba “tradicional” estava sendo substituído, pois ele ainda predominava com temas que caracterizavam o ambiente urbano carioca, como o cotidiano do trabalho e a malandragem. Talvez, outras transformações notáveis na capital do país, fossem mais diretamente responsáveis pela sensação de decadência do que os famigerados estrangeirismos. Alcir Lenharo, nos conta que o lugar da boêmia e do meio artístico carioca nos anos 30 e 40 sofreu uma trajetória descendente: em 1942 foram fechados prostíbulos e desapropriados prédios “velhos e insalubres” e em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra fechou os cassinos e proibiu o jogo no Brasil. Essas, entre outras interferências na aparência da cidade, como a alteração do bairro da Lapa, modificaram os redutos da malandragem característica dos anos 30, provocando na população em geral, uma sensação de decadência do próprio mundo do samba.
Vemos aí nada mais que o embate entre tradição e modernização, lida como decadência daquilo que representa o nacional.
A Revista da Música Popular representava naquele momento uma tentativa de resgate ou uma reinvenção da tradição (como nos ensina Hobsbawn) ao criar um projeto de restauração da música brasileira dos anos 30. Completamente articulado com esse projeto foi lançado em 1953 o álbum com três discos de 78 rpm de Araci de Almeida homenageando Noel Rosa (com capa de Di Cavalcanti, ao lado) e também o livro de Almirante, No Tempo de Noel Rosa. Desta forma, construía-se esse projeto com um panteão eleito pelo periódico, com um papel definido para a indústria cultural, com parâmetros para um juízo de valor criado e um nacionalismo musical desenvolvido tanto pelos folcloristas da música urbana, quanto pelos jornalistas, gerando assim, uma verdadeira escola que se mostrou forte a ponto de dominar julgamentos posteriores sobre a nossa música.
Um exemplo é o I Congresso Nacional do Samba, de 1962, organizado pela Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro, cuja intenção era a de preservar as características do samba sem tirar-lhe as perspectivas de modernidade e progresso. Na introdução do documento, redigido pelo folclorista Edison Carneiro, lê-se:
“Tivemos em mente assegurar ao samba o direito de continuar como expressão legítima do sentimento de nossa gente”.
Esta reação se devia a presença perturbadora da Bossa Nova, que a partir de 1959, com sua opção de renovação estética e modernização e que, ao mesmo tempo, reivindicava o seu lugar na tradição do samba, acabou por reacender o debate e torná-lo mais complexo. A Bossa Nova se tornaria uma febre mundial (na foto ao lado, a Beautiful Bossa Nova – conferindo uma imagem moderna para o país). Mas, muitos bons brasileiros não gostaram dessa nova cara para o Brasil. Um prefácio de Brasílio Itiberê, comentado na dissertação de mestrado de Enor Paiano. (O berimbau e o som universal. Lutas culturais e indústria fonográfica nos ano 60), demonstra quais eram os motivos das reações negativas que tiveram certos especialistas críticos, em alusão à turma da Bossa Nova: “privada de sua vivacidade rítmica, a melodia popular se amolentou, tornou-se invertebrada, perdendo caracteres raciais específicos”. Tratava-se de recolocar a "evolução" da tradição em consonância com o projeto de origem. Postura que terá em José Ramos Tinhorão, um baluarte das convicções conservadoras. Este crítico, que ocupa um lugar destacado na historiografia da música brasileira, não só pela importância da sua grande produção bibliográfica, como também pela sua verve polemista, ganhou fama (e desafetos) ao se pautar pela idéia de que a Bossa Nova representava o momento máximo da ruptura com as origens, logo, com a autenticidade, construindo verdadeiros manifestos contra a hegemonia da Bossa Nova e da "Moderna" MPB (hegemonia consolidada em torno dos programas de televisão), justamente num momento em que a Bossa Nova buscava nova inspiração no "morro" (como ocorreu com Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes) ou em Orlando Silva e nos sambistas antigos (como podemos notar nos álbuns de João Gilberto). Apesar desse esforço em desqualificar todo o movimento, não seria exagero afirmar que a Bossa Nova, em sentido contrário á essa condenação, é produto de exportação até hoje!
Toda a década de 60, tida hoje como um segundo período de grande importância para a nossa música em termos de qualidade e criatividade das produções, assistiu a permanência desta crítica, muito visível na rejeição, por parte de uma mesma intelectualidade, à Jovem-Guarda, ao movimento tropicalista, e á música brega, que iria inundar as gravadoras, tvs e rádios nos anos 70. No livro de Nelson Motta, Noites Tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, lançado no ano 2000, encontramos a confirmação dos preconceitos e juízos de valor enraizados e cristalizados pela idéia de decadência, em particular a contraposição entre a música popular brega e a música popular “culta”. Essa dualidade, segundo Nelson Motta, já estava bem representada desde os anos 60, através de dois programas de TV: o programa Jovem Guarda (comandado por Wanderléia, Erasmo e Roberto Carlos, na foto acima) e o programa O Fino da Bossa (apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, foto ao lado). O primeiro representava o público “alienado” e o segundo o público “politizado” - rixa entre artistas e programas que foi, segundo o autor, estimulada pela TV Record, interessada em se ver sintonizada com os interesses da indústria fonográfica. Para Nelson Motta, as expectativas e esperanças de retomada evolutiva da música brasileira se concentravam, nos anos 80, na ascensão do samba-reggae de Daniela Mercury e na produção “inspirada” de Marisa Monte. Neste embate que ele descreve, teria inequivocamente vencido o “mau gosto”, que passa então a dominar o mercado fonográfico - entre os exemplos, ganha destaque a “decadência da música sertaneja”. Mas como podemos entender um autor que define essa música como “pobre” e “vulgar” e que anuncia com orgulho a sua participação ativa na disseminação da discoteca no país, considerada por muitos, não menos “vulgar”? .
Na década de 70, o compositor Caetano Veloso, após ter sido literalmente rechaçado com “Proibido Proibir” no Festival de 1967 e muito pouco compreendido no programa da TV Globo, Tropicália, de 1968, invertera as expectativas, e no auge de sua carreira tornava-se um autêntico guru daquela geração. Mas na qualidade de mestre que agora lhe emprestavam, exigia-se também a sua condenação ao brega. Quando o compositor de “Qualquer Coisa” chamou ao palco o seu convidado, o cantor Odair José (junto a Caetano na foto abaixo de 1972), para participar do seu show, teve novamente que ouvir uma sonora vaia ensurdecendo o teatro, fruto da intolerância do público presente, que execrava o que parecia ser a antítese do próprio Caetano. Porém, sob um gesto de comando do guru, o público ficou em silêncio para ouvir a canção "Pare de Tomar da Pílula" do amigo constrangido. No fim, a platéia aplaudiu de pé. Quando sancionada por uma autoridade a qualidade do que antes era brega passa a ser imediatamente reconhecida. Isto nos mostra quão tênue é a linha divisória entre o que merece ou não ser cultuado nesse tipo de julgamento. Ao terminar a execução daquela música que ficou muito melhor na voz do compositor baiano, este proferiu um julgamento que ia de encontro ao preconceito evidenciado, invertendo totalmente a sua polaridade: “Nada mais Z do que um público classe A”.
Nada, porém, fez regredir a idéia de decadência. Ao contrário. A partir da época da composição da Rita Lee comentada no início e pelas décadas de 80 e 90 a dentro, essa sensação só aumentou em reações cada vez mais contundentes em relação aos novos movimentos musicais, à música sertaneja, à Lambada, ao Axé e ao Pagode, para não falar do Punk, do Funk, do Hip-Hop e do Rap entre outros movimentos mais isolados.
Quando a noção de decadência na música se articulou nestes anos com outras sensações semelhantes, o clima geral levaria o cantor e compositor Cazuza a gritar: “ideologia, eu quero uma pra viver!” e “Meus heróis morreram de overdose” (Álbum Ideologia, 1988 – foto da esquerda) e á relevante dúvida levantada por Renato Russo: “Que país é este”? (título do álbum de 1987 foto da direita). Ao mesmo tempo o lançamento da série de Song Books, pela editora Lumiar de Almir Chediak, novamente reforçava, na escolha dos artistas “homenageados”, o mesmo panteão consagrado a muito tempo pelos especialistas. Não foi a toa, a escolha de Noel Rosa para ser o primeiro da longa série (editada a partir de 1991). O panteão, assim como a noção de decadência já estava no consciente coletivo. Noção que, como vimos, sempre foi, e ainda é, uma constante na história da nossa música popular: ainda em novembro deste ano (2006), o tropicalista Tom Zé disse na TV Cultura que a MPB continuava sofrendo de diarréia. È realmente triste que perante os muitos talentos que lutam pelo reconhecimento, ainda hoje impere esse sentimento.
Numa coisa, contudo, os especialistas concordam: o que ocorre com a música popular não é por falta de talento. Aqui o talento é farto, em todos os ritmos, todos os estilos, todas as formas. Não há cidade brasileira, do Oiapoque ao Chuí, onde não encontremos talentosos músicos e compositores que provam que a sensação de decadência corresponde á uma sensação não totalmente correta. O jornalista e músico Luís Nassif, em seu livro "O Menino do São Benedito e Outras Crônicas" também discorda da sensação de decadência na MPB: "Penso que a música brasileira é a melhor do mundo. Eu e Michel Legrand, para quem a música da primeira metade do século 20 foi o jazz e a da segunda, a MPB. Hoje em dia se tem a mais talentosa geração de instrumentistas da história. (...) O grande elo fraco da cadeia produtiva musical é o fonográfico e radiofônico. A indústria musical é anacrônica, é explorada por amadores, incompetentes, e a indústria de rádio é um horror, com seu sistema de concessões e jabá. (...) Vivi como adolescente toda aquela fase dos anos 60 e sei que em termos de quantidade e qualidade a MPB é hoje no mínimo cinco vezes melhor do que era. A cobertura jornalística musical não deixa vir à tona tanta qualidade e quantidade: A cobertura de jornal está muito presa ao que é oferecido pela indústria cultural. (...) Acho que falta sair desse tripé de gravadora, rádio e TV, inverter o circuito, entrar nos guetos, montar uma comunicação com eles".
Além de todas essas questões levantadas por Nassif, devemos ainda acrescentar que as novas produções musicais, de qualidade reconhecida ou não, não retiraram das prateleiras, das estantes e dos palcos, as músicas populares de todas as épocas e estilos, que continuam a “fazer a cabeça” de gerações e gerações de novos ouvintes. Graças á essa verdadeira “resistência cultural”, na transmissão de discos de pais para filhos, estes acabam conhecendo e acompanhando o repertório imenso de boa qualidade, que pode não freqüentar a maioria das rádios, mas está cotidianamente presente nas casas de espetáculo, nos bares e lares brasileiros. É preciso lembrar também que os novos movimentos estão a ampliar e não a restringir o espaço criativo. O Rock é hoje um importante dispositivo de produção de subjetividade, e ao mesmo tempo pode ser visto como um dispositivo de coletivização, como possibilidade de superação da solidão e do isolamento que o sistema social produz. O fenômeno do Funk nos morros e subúrbios cariocas para além de um criticismo nacionalista estéril, que veria aí unicamente a decadência do samba, pode estar servindo à reconstituição de novos e importantes territórios existenciais.
Enfim, acredito que devemos evitar confundir o que a Mídia nos apresenta como representantes da nossa cultura com aquilo que o nosso povo realmente produz e consome. Não julguemos pela péssima qualidade dos produtos anunciados por essa mídia – aliás, esta sim decadente graças á produção pirata – toda a produção rica e diversificada que podemos encontrar a qualquer hora em todos os cantos do nosso país. A qualidade estará, via de regra, muito presente, desde que nos esforcemos para alcançar um pouco além daquilo que os meios mais imediatos nos oferecem, e que enxerguemos com um pouco mais de profundidade a arte que realmente fica pra história. Não meus amigos, a nossa música, a nossa arte, a nossa cultura não está decadente! E Deus ainda é brasileiro!

*Celso Branco
é mestrando do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC). Também atua como pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (TEMPO).
Ambas as instituições da UFRJ.
BIBLIOGRAFIA
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domingo, 12 de julho de 2009

Samba de fato


Texto/parte do livro do Spirito Santo que conheci virtualmente no site overmundo. Muito instingante e aguardo o livro com ansiedade


Este post é um trecho do livro, ainda no prelo, denominado 'O Samba e o Funk do Jorjão', cuja idéia central é esmiuçar e desconstruir alguns dos mitos, supostamente, criados em torno da história do Samba - enquanto uma espécie de síntese da cultura do negro brasileiro, em geral - mitos estes que, como ocorre com muitas outras ficções antropológicas montadas no Brasil, foram construídos por criativas comunidades de intelectuais, ao longo do tempo e com intenções, quase sempre, muito bem medidas. Embora tenham sido baseados, claramente, em premissas equivocadas, infundadas ou mesmo deliberadamente falsas, infelizmente, estes mitos foram se cristalizando até se tornarem verdades absolutas, oficiais, por força de sua insistente reiteração (principalmente por certas vias acadêmicas). Ao que parece, na maioria dos casos, a principal função destas mistificações, é dar sustentação a certos paradigmas da excludente sociedade brasileira, entre os quais aquele que tenta estabelecer – sempre sem afirmar - a existência de uma espécie de hierarquia cultural (ou mesmo intelectual), entre as raças ou classes no Brasil, que daria alguma legitimidade a desigualdade social predominante. Dentre estes eletrizantes mitos, o mais curioso talvez seja o do 'Berço do Samba', que parece tentar comprovar - na verdade, de forma extremamente sutil - a velha tese racista de Nina Rodrigues sobre uma improvável supremacia dos negros bahianos ('sudaneses' supostamente maioria étnica na Bahia) sobre os demais (negros 'Bantu', vindos de Angola para as fazendas de café do Vale do Rio Paraíba do Sul, certamente, maioria étnica no Rio de Janeiro desde, pelo menos, o início do século 19). Entre outras fontes, recorri para esta parte do trabalho, aos escritos (em notas assinaladas) de Nei Lopes – que gentilmente assina o prefácio do livro - além de Muniz Sodré e Sérgio Cabral, o pai, especialistas que dispensam quaisquer comentários)

Com vocês então:

O Mito do 'berço do Samba

--------------------------------Não deu no jornal:

O dia em que um Samba foi cantado na Mangueira...pela primeira vez ...'Quem cantou foi Eloy Anthero Dias, o ‘Mano Eloy’, um personagem legendário do samba carioca. Morador de Madureira, na época, Mano Elói viria a fundar mais tarde pelo menos três escolas de samba (Prazer da Serrinha, Deixa Malhar e Império Serrano). Foi ainda, segundo dizem, um respeitado pai-de-santo e, durante muitos anos, destacou-se como líder sindical dos estivadores do cais do porto. '...Mano Eloy cantou primeiramente na casa de Tia Fé e depois para os integrantes do Pérolas do Egito. Era um samba do tipo partido alto em que se repetia o refrão e improvisavam-se versos. O refrão dizia apenas o seguinte: ‘O padre diz Miseré Misereré nobis’. Em seguida, vinham as quadras improvisadas, quase sempre relacionadas com as circunstâncias em que o samba era cantado, Carlos Cachaça lembrou-se que, numa delas, Mano Elói brincava com a dona da casa, inventando versos como "amanhã vou na casa de Tia Fé", rimando com "vou tomar 'café' '.O Samba de Partido Alto cantado por Eloy, principalmente pelo fato de usar uma rima com ‘café’, poderia ter algum remoto parentesco com o famoso ‘Batuque na Cozinha’ que, por sua vez, já havia sido um conhecido Lundu de letra africana, meio cabalística, bastante famoso na Corte Imperial como ‘Lundu do Pai Zuzé’ (este sim, matriz evidente do famoso e posterior ‘Batuque na Cozinha’ (assinado por João da Bahiana).

Lundu do Pai Zusé (domínio público - século 19)

‘Batuque na cozinha ,

Sinhá num qué

Pru causa da crioula

do Pai Zusé

Auê, Zambi...Zique...pá ,

Zique...pá ,

Zique...pá , Zique...pá ...

_ Cadê pirigurê? (caxinguelê)...

'Batuque na Cozinha (João da Bahiana, século 20)

'Batuque na cozinha a Sinhá num qué

Por causa do batuque eu queimei meu pé....

Eu fui na cozinha pra pegá cebola

E o branco com ciúme de uma tal crioula

Deixei a cebola, peguei na batata

E o branco com ciúme de uma tal mulata...'


--------------------------Existem muitos outros aspectos curiosos, instigantes mesmo, naquela primeira audição de Samba na casa da bahiana Tia Fé, na Mangueira dos idos de 1910, protagonizada, pelo ilustre visitante Eloy Anthero Dias, um encantado Carlos Cachaça, e o pessoal do rancho ‘Pérolas do Egito’, muitos deles talvez futuros integrantes do ‘bloco dos Arengueiros’, segundo consta, o núcleo formador da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Embora eles sejam considerados hoje em dia fatos consumados e estabelecidos, que tal dar uma olhada neles, sob outro ponto de vista? Para começo de conversa, há na crônica sobre as origens do Samba, um inexplicável exagero na hora de se falar desta impressionante figura que foi Eloy Anthero Dias, o Mano Eloy. O que se vê invariavelmente legendado em sua história, na época em que cantou pela primeira vez um Samba na Mangueira, é a sugestão de que ele era um ‘bamba, exímio sambista, jongueiro, pai de santo e macumbeiro’, cheio de super poderes, um verdadeiro ‘Superman’ negro. Ocorre que este surpreendente Mano Eloy (com certeza um nome que merece mais notoriedade do que lhe dão os especialistas em Samba), pelos dados até agora disponíveis, devia estar, no máximo, com 22 anos na ocasião descrita por Carlos Cachaça (que seria mais novo ainda que Eloy). '

...Há 30 anos que Eloy Anthero Dias (agora aos 43 anos) ...faz parte do Samba- essa dança que encanta e embala. Durante este tempo, inúmeros sambas fez ele, inclusive ‘Miserê’, ‘Não vou lá no candomblé,’ ‘Moro na roça’, e ‘B com A’, estes tiveram retumbante sucesso' . (Trecho de biografia de Eloy publicada pelo jornal ‘A Rua’, na ocasião em que foi eleito o primeiro cidadão Samba do carnaval carioca, em 1936)Estando há cerca de sete anos no Rio de Janeiro e havendo ingressado no chamado mundo do Samba com cerca de 18 (portanto há apenas quatro anos antes desta sua ida à Mangueira), Eloy devia ser aquela altura, astuto sim, despachado, descolado; um jovem prodígio até mas, experiente com certeza ele não poderia ser. Não havia bagagem de vida, cabedal. Havia muito chão ainda para o futuro ‘bamba’ percorrer. '... Sambista nascido em Engenheiro Passos, no estado do Rio de Janeiro em 1888 e falecido em 1971, na cidade do Rio – para onde viera com 15 anos de idade- (...) Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro de cânticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. Seu companheiro nessa empreitada foi o já referido Amor. O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos pontos de macumba, com atabaques e tudo o mais'. O fato é que, por alguma estranha razão, ligada talvez ao inusitado da situação (quem sabe talvez o fato de ter sido um desconhecido ‘estrangeiro’ de Oswaldo Cruz, o verdadeiro introdutor do Samba, no tradicionalíssimo reduto da ‘Estação Primeira’), nossos estudiosos acabaram deixando sugeridas na biografia de um Eloy ainda mal saído da adolescência, qualidades que ele evidentemente só iria ter muitos anos depois.

A precocidade de Eloy (a quem também Nei Lopes, de certo modo, atribui a introdução do samba na Mangueira, sob a forma de rodas de Batucada e de Pernada) e de outros grandes mestres do Samba, era bastante comum naquela época, quando os conceitos adolescência ou juventude eram um tanto diferentes do que são nos dias de hoje. Mesmo neste caso há de se convir, no entanto que, se referindo àquela ocasião, os dotes posteriormente atribuídos a Mano Eloy eram certamente exagerados.

---------------------------Deu até no 'Fantástico': O Quintal e a Sala da Tia Ciata

O outro aspecto, este mais instigante ainda, é que, se é fato realmente que na Mangueira de 1910 não havia ainda algo que se parecesse com o ‘Samba de Partido Alto’ trazido por Eloy (fato que explicaria a surpresa do menino Carlos Cachaça) a enfática afirmação da maioria dos estudiosos de que o Samba nasceu na Praça Onze, nos quintais das tais ‘Tias Bahianas’, pode não passar mesmo de um mito, um episódio exagerado pela bibliografia. Se as adjacências da Praça Onze fossem realmente o lugar onde se localizava o ‘berço do Samba’, porque cargas d’água o Morro da Mangueira, tão perto dali, seria o último a saber, o único reduto a não participar da construção desta grande novidade que, em 1910 já deveria estar em franca e notória gestação? Talvez tenha sido porque o que se irradiava da Cidade Nova para o Morro da Mangueira, não era ainda, definitivamente, Samba, e sim Rancho Carnavalesco. É o que se pode deduzir pela lógica dos fatos, principalmente se destacarmos o emblemático detalhe da reunião na qual Eloy cantou o seu seminal Partido Alto, ter ocorrido, exatamente, na sede de um rancho, o ‘Pérolas do Egito’.Pelo visto, era mesmo das bandas do Estácio e, principalmente, da roça de Oswaldo Cruz e adjacências (Morro da Serrinha) que chegavam os novos ingredientes, para engrossar o caldo do Samba que a esta altura, já estava borbulhando, quase no ponto, ali por volta de 1910 / 20. De todo modo, mesmo sem se saber exatamente quem influenciava quem, a lista de precursores, Pais e Mães do Samba na época, pode ser bem mais extensa – e variada - do que aparece na bibliografia oficial:...'De todas as tias, a mais famosa e a mais importante foi Tia Ciata (...) em cuja casa os pesquisadores asseguram ter nascido o samba carioca. Seu verdadeiro nome era Hilária Batista de Almeida, uma mulata muito bonita, que chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1870, com 20 anos de idade. Instalada no Rio, Tia Ciata passou a ganhar a vida com um tabuleiro de quitutes baianos na rua Sete de Setembro.'Talvez seja mais razoável se deduzir, portanto, que sendo a palavra Samba, por esta ocasião, talvez uma forma ainda genérica para se designar ‘Chulas de negro’ ou, simplesmente ‘Música de negro’, o que fermentava no quintal da Tia Ciata na verdade – e eventualmente chegava até no Morro da Mangueira, sem atrair muito a atenção do povo de lá - não era exatamente o Samba definitivo mas sim, uma das muitas formas de Samba que pipocando aqui e ali na cidade, disputavam uma hegemonia que estava para se cristalizar a qualquer momento. O tal ‘berço do Samba’ poderia estar aquela altura, em qualquer lugar. Não havia uma estrela guia apontando para a 'Cidade Nova', como muitos especialistas em Samba insistiram em afirmar. Contudo, embora sendo um exagero muito oportuno e providencial, pode não ter sido tão gratuita assim a eleição da área da atual Praça Onze, por parte de nossos intelectuais, como o berço oficial do Samba. Nas primeiras décadas do século 20 (num fluxo que, se inicia na segunda metade do século anterior) o lugar já se configurara como uma verdadeira colônia bahiana, congregando emigrados de diversos tipos, inclusive personalidades do candomblé e até mesmo alguns alufás maometanos, mal vistos em Salvador desde os tempos da última revolta dos Malês.

Situada ali, bem perto do centro da cidade propriamente dita, do centro mundano incrementado pela recente criação do boulevard parisiense que era a Avenida Central, no qual se situavam os ‘points’ da intelectualidade carioca, esta colônia bahiana se prestava maravilhosamente bem – embora de forma simplista – como representação simbólica, uma espécie de microcosmo da cultura típica – idealizada - dos negros africanos na capital federal. Ao que tudo indica, no entanto, a julgar pelo que nos demonstram certos antecedentes da história do Samba, este pessoal da Bahia estava muito mais ligado mesmo é na afirmação por aqui, de suas próprias tradições culturais, trazidas do nordeste, entre as quais preponderavam o candomblé e os Ranchos (Pastoris ou Lapinhas), principal paixão cultural destes bahianos. '... Carlos Cachaça não guardou na memória o ano em que ouviu samba pela primeira vez em Mangueira, lembrando-se apenas de que foi no tempo do Rancho Pérolas do Egito, tudo indicando, portanto, ter sido antes de 1910. Mas não se esqueceu das circunstâncias em que o fato se deu... 'Aliás, pode se considerar por isto mesmo – e com certa propriedade até - que, ao que parece, houve uma curiosa subestimação – ou mesmo omissão - do caráter essencialmente lusitano da herança cultural trazida por estes grupos de bahianos para a Corte do Rio de Janeiro, herança que possui traços muito evidentes na cultura primordial do Morro da Mangueira, como bem nos demonstra o ambiente encontrado por Mano Elói, nos idos de 1910, quando lá introduziu o gosto pelo chamado Samba de fato. A implantação destas tradições luso-bahianas no âmbito da cultura urbana do Rio de Janeiro foi, inclusive, o motivo de muitas disputas e demandas internas, entre os principais líderes desta colônia nordestina, das quais a mais empolgante talvez tenha sido a que poderia ser chamada de A demanda dos Hilários, desentendimento ocorrido entre Hilária Batista de Almeida, a famosa Tia Ciata e Hilário Jovino Ferreira, segundo dizem o introdutor do Rancho no carnaval carioca, na disputa pela criação de um destes grupos. A referida disputa, de certo modo, separou os bahianos em duas facções rivais: A da Cidade Nova (Tia Ciata) e da Gamboa (Hilário Jovino) Além da eventual opção preferencial pelo Rancho Carnavalesco, a julgar por algumas entrelinhas, contidas nos muitos relatos existentes sobre o assunto, o tipo de Samba praticado na casa da Tia Ciata – a bem da verdade um reduto de certa elite negra, composta por geniais músicos e compositores profissionais, além de funcionários públicos bem sucedidos (o marido de Ciata, o médico João Batista da Silva, era chefe de gabinete do chefe de polícia do Governo de Wenceslau Braz) talvez fosse uma forma de Samba um tanto esnobe, impregnada ainda dos maneirismos estéticos dos diversos gêneros de música européia que andaram em voga no fim do Império, tais como o Schotisches, a Polka e a Mazurka.'Embora fosse daquela mesma geração, Pixinguinha não era exatamente um homem de Samba. Ele próprio contou que, nas festas descritas por Donga, não ia para o quintal: _ ’Eles (os sambistas) faziam seus sambas lá no quintal e eu os meus choros na sala de visitas. As vezes eu ia no terreiro fazer um contracanto com a flauta mas não entendia nada de samba’. No mesmo artigo, Sérgio Cabral comenta também que, um tal de Marinho que Toca, um cavaquinista, foi quem ensinou Donga a batida do Samba (provavelmente numa das festas na casa de Ciata), ou seja, já naquela altura, do mesmo modo que Pixinguinha, seu companheiro no grupo ‘Os Oito Batutas’, Donga também não era ainda muito chegado ao ritmo do qual, logo depois, seria incensado como o suposto ‘inventor’ (pelo menos em gravações) .

O que se fazia na casa da Tia Ciata, portanto, era certo tipo de samba negro sim, mas, de certo modo, um tanto ‘aculturado’, que já fora chamado antes de ‘Lundu’ e tentava agora descolar de si o nome de ‘Maxixe’, com o qual a mídia da época já ameaçava batizá-lo de vez, uma espécie de ‘Bossa Nova da Belle Èpoque’, em suma. O que se pode afirmar com certeza é que a receita de Samba tentada na casa da Tia Ciata, foi uma experiência de fusão musical que, pelo menos como Samba, não vingou. A receita que o caldeirão não conseguiu cozinhar (ou o cozido que não apeteceu a negrada, ao ‘populacho’); uma forma de Samba que, não prevalecendo, foi se diluindo, amarelando com o tempo, abafada pela batucada avassaladora que o povo negro da Roça, liderado pelo enorme poder de sedução e persuasão de figuras como Eloy Anthero, veio trazendo para as ruas da antiga Corte. Ao que nos parece, portanto, o Samba definitivo, aquele que emergindo por volta de 1920, se apossa rapidamente da cidade, só começa a tomar forma mesmo, quando o Jongo e outros ‘batuques’ instalados nas roças atrasadas da periferia, começam a se espalhar, como água pura - via cais do porto talvez - por esta cidade já irremediavelmente partida ao meio por uma imensa e simbólica ‘Avenida Central’ que, separando a população entre ‘brancos’ e ‘crioulos’; remediados e desvalidos, parte também nossa música popular urbana em duas vertentes culturais quase inconciliáveis, que só se encontrariam para desfilar no Carnaval.

Reproduz-se assim, como num samba enredo improvável, o quadro de intenso apartheid que havia sido instalado na cidade do Rio de Janeiro por seu prefeito, o ‘smart’ Pereira Passos, em 1906. Por este viés, pode-se compreender também, e com maior rigor e clareza, a natureza de uma certa polêmica que opunha de um lado, o 'samba' ‘Pelo Telefone' (aquele filho dileto do ‘Maxixe’) e de outro, o ‘Samba de Partido Alto’ (o filho legítimo da ‘Chula Raiada') aquele que enfim, logo em seguida, açambarcaria de vez o título de Samba de fato.

Num definitivo depoimento divulgado no livro de Muniz Sodré ‘ Samba o dono do corpo’, Donga afirma enfático que a melodia de ‘Pelo Telefone’ foi copiada de um tema folclórico, muito popular na ocasião (uma chula, portanto) no qual ele inseriu versos, encomendados ao jornalista Mauro de Almeida. O que conhecemos como o primeiro Samba gravado, não seria portanto nenhuma novidade. Na verdade nem o nome de 'composição' original mereceria porque, não passava de uma simples paródia (coisa que aliás, segundo o mesmo Donga, era bastante comum naquela ocasião). Podemos deduzir então que “Pelo Telefone’, era uma chula-paródia, em ritmo de Maxixe que, algum esperto produtor (Fred Figner, da Casa Edison ou o próprio Donga), detectando o grande apelo comercial da palavra, resolveu batizar de ‘Samba’. É sintomático inclusive que, começando provavelmente a ser elaborado em 1910, este ’Samba de fato’ tenha tido que esperar quase 20 anos mais para ocupar, no carnaval, o lugar que as marchas, lundus e maxixes ocuparam, durante as duas primeiras décadas do século 20.'...O primeiro rancho carnavalesco em Mangueira chamava-se Pérolas do Egito, criado antes de 1910, ano em que surgiram o Guerreiro da Montanha e um outro cujo nome Carlos ('Cachaça') esqueceu, mas que teria sido formado pelos moradores do alto do morro. Mais tarde, nasceu o Príncipe da Floresta, o mais famoso rancho de Mangueira, que adotou as cores verde e rosa.

Os negros Mangueirenses, no mesmo momento em que tentavam forjar a difícil mistura entre seus candomblés e macumbas com as dolentes marchinhas das Lapinhas, dos Pastoris e dos Ranchos dos lusitanos, devem ter ficado mesmo encantados com a astúcia e a picardia africana, angolana, contida nos ‘Sambas de Partido Alto’ trazidos por Mano Eloy. Segundo alguns autores, foi neste exato momento, quase em 1910, que eles, os Mangueirenses (junto com o pessoal da vizinha Praça Onze), foram irremediavelmente contaminados pelo vírus daquele Samba jongado que vinha da Roça ‘atrasada’. Nascia o Samba de Fato. Seu berço? Alguma fazenda de café do Vale do rio Paraíba do Sul, provavelmente. Ou, quem sabe? Algum pátio de aldeia, próximo à Luanda, Angola. De certo apenas isto: O nosso velho Samba não nasceu na Praça Onze

...E muito menos na Bahia.

Spírito Santo


Grupo Vissungo, Aniceto do Imperio e Clementina


O texto do Spirito Santo tornou-se um documento, um relato interessantissimo de um periodo meio obscuro da MPB por isto esta sendo postado, pois jongo, partidos, mercado fonografico, cultura negra, ditadura, modernidade, musica africana real, Aniceto do Imperio, Clmentina de Jesus - o samba tradicional esta incluso no processo do relato.


Música Popular Preta e MPB branca


Em 1975, em plenos anos de chumbo, foi criado no Rio de Janeiro um conjunto musical chamado Grupo Vissungo. Em 1974, ainda sem nome definido, o grupo teve como antecedentes o trabalho do trio formado por Antônio José do Espírito Santo (vocais, violão e percussão), seu irmão Luiz Antônio – Lula - (contrabaixo, bandolim, cavaquinho e vocal) e Roosevelt da Silva (Violão). É já desta fase a adoção do principal elemento da proposta do grupo, aquele que o caracteriza definitivamente: a pesquisa da cultura negra do Brasil, e a tentativa de construir, a partir desta pesquisa, um conceito de música negra brasileira moderna, coisa impensável naquela época contraditória, onde a onda vanguardista da MPB não chegava até a cozinha da tradicionalíssima música negra, espécie de ‘reserva técnica’ do folclore nacional.

A idéia ‘contraculturalista’ de uma música negra ‘pop’, era eletrizante para o clima de resistência cultural contra a ditadura, que impulsionava a juventude artística, muito criativa e atuante da época, rumo ao mergulho de cabeça na experiência pop-vanguardista-nacionalista que foi o ‘Tropicalismo’.

Mas havia também a não menos profunda busca da sutil modernidade contida na música do ‘Brasil profundo’, pesquisa inaugurada pelo fabuloso Quinteto Violado, que fazia uma interessante fusão entre a música tradicional nordestina (como a rica escala afro-ibérica de Asa Branca, de Luiz Gonzaga) com certos aspectos, digamos assim, mais avançados da chamada moderna música popular brasileira (expressos na obra de Edu Lobo , por exemplo), com elementos de jazz e música semi-erudita, num caldeirão de muita inventividade e desprendimento.

O nome do Grupo Vissungo, no contexto desta proposta, foi extraído então da expressão ‘Vissungo’ (‘Ocisungo’, hino ou canção no idioma Umbundo de Angola) que denominava cantos de trabalho da região do garimpo de ouro e diamantes em Diamantina, Minas Gerais, no tempo da escravidão. Esta característica ‘antropológica’ da proposta, em particular, acabou por revelar, de maneira fortuita, uma ligação direta entre os dois irmãos fundadores (Antônio e Lula Espírito Santo) e seu mais remoto passado. Descobriu-se assim, no transcorrer da pesquisa que a família dos dois, pela linha paterna, muito provavelmente, havia sido iniciada por um antepassado vindo de Angola, que havia sido escravo exatamente naquela região e, como tal, poderia ter um dia cantado vissungos. Coisa do destino talvez, gravado como memória genética. Ainda em 1974, já com esta mística proposta definida, o grupo adota, durante um curto espaço de tempo, o nome de ‘Sararamiôlo’, agora formado também, além dos irmãos Espírito Santo (Antônio e Lula), pelos também irmãos Carlos ‘Codó’ Brito (que substitue Roosevelt) e Lena ‘Codó’ Brito (filhos do grande violonista bahiano Clodoaldo Brito, o ‘Codó’). É assim que, agora como um quarteto, durante ensaios do recém construído prédio do DCE da UFF, nasce oficialmente com este nome em 1975, o Grupo Vissungo. É desta fase a criação das bases estético-musicais do trabalho do grupo, representadas pelo casamento entre a pesquisa de campo em comunidades negras do interior do país, e o aprofundamento dos ricos elementos de modernidade eventualmente contidos nas inusitadas escalas desta música tradicional. Este aprofundamento nascia, principalmente, do senso harmônico de Carlos Codó, herdeiro da erudição do violão de Codó pai, professor emérito, desde a Bahia, de muita gente boa, tal como João Gilberto, Caetano Veloso, Egberto Gismonti e Gilberto Gil (com quem o autor chegou a cruzar, entre uma aula e outra, na casa de Codó, no bairro do Estácio, no Rio).

Esta fase é inspirada também nas sugestões apaixonadas do historiador e acadêmico José Maria Nunes Pereira, um especialista em cultura angolana que, já na fase anterior (Sararamiôlo), chamava a atenção do grupo para a enorme beleza da música africana real. Esta fase seminal, culmina com a descoberta, por parte do grupo, da grande similaridade existente entre a cultura negra tradicional do Brasil e o que, em termos musicais, ocorria na África contemporânea - notadamente Angola e Moçambique.

A grande questão neste momento é que, apesar de se estar vivendo uma época (1978) de grande efervescência cultural, musical principalmente, havia muita restrição - e até um certo desprezo- por parte do meio musical em geral (e do mercado fonográfico em particular), por abordagens artísticas voltadas, diretamente e de forma mais aprofundada, para a cultura negra. Tolerava-se o Samba convencional e algumas poucas propostas de forma genérica denominadas ‘Música Afro’, geralmente adaptações de pontos religiosos tradicionais, extraídos do Candomblé e da Umbanda. No âmbito da música essencialmente afro-brasileira, dominada por um purismo exacerbado, a modernidade era, portanto, rigorosamente, um conceito tabu. A releitura criativa, a experimentação e, principalmente, a utilização livre de instrumentos ‘acústicos’, convencionais, misturados com instrumentos eletrônicos, como contrabaixo e guitarra por exemplo – marcas essenciais da proposta do Vissungo - já inseridos em outros gêneros musicais desde o final da década de 60 (onde pontificou o ícone “Alegria, alegria”, com Caetano Velloso e Os Mutantes) não eram, estranhamente, bem tolerados nas poucas bandas e grupos de música negra existentes. Este comportamento conservador do meio musical, de certo modo, forçou o Grupo Vissungo a participar, de forma militante, no chamado Movimento Negro, tornando-se uma espécie de símbolo musical da luta antiracista carioca naquele momento. No entanto, do ponto de vista de suas preferências culturais, havia uma curiosa contradição se instalando no seio deste movimento negro emergente que, embora firmemente interessado na erradicação do racismo no Brasil, passava a subestimar - ou mesmo ignorar - em suas estratégias e políticas, as eventuais lições advindas da luta anti-colonialista, ainda em curso em Angola e Moçambique, para exercer no âmbito externo, uma atração política, de certo modo exagerada, imitativa e acrítica, pela cultura negra norte americana, notadamente, a chamada Black Music, trilha sonora essencial da luta dos Panteras Negras e do neo islamismo de Malcom X.

Neste mesmo sentido, no plano interno, tornando suas opções culturais desta vez francamente elitistas, este Movimento Negro passou também a privilegiar uma cultura negra idealizada e, de certo modo oficializada já que, referendada por teses de mestrado de eminentes etnólogos, privilegiava muito mais o Candomblé bahiano e produtos sucedâneos, em detrimento da música negra de Minas Gerais, São Paulo e do próprio Rio de Janeiro (para ficar só nos exemplos da região Sudeste) música oriunda das colônias e ex-colônias de língua portuguesa que mandaram escravos em maior número para o Brasil, exatamente a vertente para a qual, por coerência artística, o Grupo Vissungo se voltava nesta época.

São estas contradições culturais que, afetando o mercado musical de um lado e o Movimento Negro de outro, introduzem o Grupo Vissungo numa crise de identidade que o leva a se afastar um pouco de sua proposta artística original, de vanguarda, interessado em contribuir na superação desta contradição que ameaçava afastar – como por fim afastou- o Movimento Negro brasileiro de suas bases populares mais evidentes.

-----------------Aniceto e Clementina, cadê vocês?

É ainda na tentativa de superar estas limitações ‘de mercado’ que o Vissungo radicaliza seu mergulho nos meandros da música negra tradicional, se ligando á figuras essenciais como Clementina de Jesus (por impulsão da Fundação Cultural de Curitiba, dirigida á época por Jaime Lerner, que nos une à Clementina num show antológico no Teatro Paiol) e João do Valle, ícones da década anterior, lançados nos shows ‘Opinião’ e ‘Rosa de Ouro’, mas, de novo caídos no limbo do esquecimento, fora do mercado. Neste mesmo sentido, um pouco mais tarde, o grupo se liga profundamente a Aniceto do Império Serrano, figura histórica do samba carioca mais profundo (um dos maiores especialistas em Partido Alto), relegado ao total ostracismo na ocasião e grande influência no trabalho do grupo a partir de então. A fase se caracteriza também pelo aprofundamento, por parte do grupo, de sua pesquisa de campo, exercendo de forma militante a difusão da música africana, principalmente angolana, não só em seus aspectos originais, como também em sua expressão afro-brasileira, principalmente, o Jongo e a Congada. A experiência, flagrada pela revista Cadernos do Terceiro Mundo, editada por asilados brasileiros no México e distribuída mundialmente, deu ao Grupo o status de boa referência neste campo, não só em seu viés, francamente, antropológico, como em sua opção pela difusão de aspectos da cultura popular do interior do Brasil que viviam, solenemente, esquecidos nos grotões. O radicalismo desta fase, acentuando a crise de identidade, provocou um racha no grupo e a posterior dispersão de alguns de seus membros originais – entre os quais Lula Espírito Santo - que decidiram tentar penetrar no mercado sob a forma de grupo de Samba convencional.

Sobrevém uma fase de muito engajamento e alguma incerteza artística, com a adesão de músicos amadores, de diversas procedências, compondo formações apenas adequadas, a um repertório onde predominava a música negra tradicional do interior da região sudeste do Brasil. As fusões mais recorrentes eram entre a música tradicional de Minas Gerais, e canções revolucionárias de colônias, como Angola, Guiné Bissau e Moçambique, que promoviam uma sangrenta guerra de libertação contra a metrópole portuguesa. Pontificavam no repertório, letras do poeta Agostinho Neto, musicadas por Rui Mingas, ambos angolanos e de José Carlos Schwartz, compositor e guerrilheiro guineense, gravado em disco produzido por Miriam Makeba.

Por vias transversas no entanto, esta fase (meados da década de 80) foi muito bem sucedida pois representou enfim, o ingresso do Vissungo no mercado fonográfico, a partir da autoria, junto com Wagner Tiso (e a voz de Milton Nascimento) da premiada trilha sonora do filme Chico Rei de Walter Lima Júnior. O disco gravado pela Som Livre - único da carreira do Grupo Vissungo até hoje- contém entre outras pérolas, o último registro em estúdio da voz de Clementina de Jesus, cantando a introdução da música Xico Reyna (de Espírito Santo e Samuka). ...”O épico Chico Rei deu continuidade ao projeto de um cinema histórico mais atento às elaborações mitológicas que ao rigor das versões acabadas. Lima Jr. usa a história do primeiro escravo a se tornar dono de ouro no Brasil para investigar as suas próprias raízes negras. O Grupo Vissungo, em sua fusão de arte e militância, teve papel decisivo na formatação sonora do filme, que ainda mobilizou ícones da música negra brasileira como Milton Nascimento, Clementina de Jesus, Naná Vasconcelos e Geraldo Filme. “Trecho do artigo “um cinema que quer ser música” de Carlos Alberto Mattos Publicado na revista Veredas (CCBB/Rio, Nov-2000) Seguiram-se a participação do grupo nos discos de carreira de Milton Nascimento (‘Encontros e despedidas’), Wagner Tiso (‘Branco & Preto/Preto & Branco’) e Tetê Espíndola (‘Gaiola’).

A crise de identidade do Vissungo, no entanto, prossegue pois, a vocação original do grupo na busca da modernidade artística (interrompida no início da década), só poderia ser retomada, se contasse com novos músicos com talento, experiência e vontade para encarar os novos desafios musicais que, desta feita, seriam marcados pela busca de um formato, ao mesmo tempo, moderno e popular, de preferência dançante, tendência que passava a predominar na música urbana do mundo inteiro naquela época (época do boom da indefectível ‘Lambada’).

O grupo é por fim muito bem sucedido nesta fase, encontrando com sua nova formação, composta por Espírito Santo (vocal solo e percussão), os retornados Lula Espírito Santo (baixo e vocal) e Carlos Codó (violão), além de Samuka, José Maria Flores (bateria) e Braz Oliveira (Guitarra) uma sonoridade muito aproximada do que buscava desde sua origem.

-------------Dançando no ONU Center Wien

Em 1989, com esta nova formação, o Vissungo faz então sua primeira viagem á Europa, realizando uma das melhores experiências de sua carreira no show na sede européia da ONU em Viena, em benefício da Unicef para uma platéia totalmente composta por africanos, de todas as partes do continente, que dançavam, cada qual ao jeito de seu país, aquela mistura de música brasileira, guineense e moçambicana que o Vissungo apresentava. A forte energia produzida pela curta, porém, intensa primeira experiência do Vissungo na Europa, não encontra, no entanto, grande respaldo com o retorno do Grupo ao Brasil. Envolvido em mais um de seus equívocos eleitorais o povo brasileiro acabara de eleger para presidente, o aventureiro populista Fernando Collor de Mello que, após uma série de ameaças ás ‘elites’, interrompia a maioria das iniciativas governamentais voltadas para o fomento da cultura. O intempestivo ato do ‘caçador de Marajás’, inviabilizava o trabalho de vários artistas e, praticamente, determinou a interrupção das atividades do Grupo Vissungo, que negociava com contatos da Funarte da época, a gravação de seu primeiro disco solo. É quando surge o irrecusável convite do sociólogo italiano Tulio Aymone, da Facoltá de Economia de Modena, para que o Vissungo, a princípio representado por apenas dois de seus membros, Espírito Santo e Samuka, se apresentasse no Festival Internacional de Cultura do jornal do Partido Comunista italiano L’Unitá”, em Bologna. Foi assim que o Grupo Vissungo, cansado de guerra, decidiu, numa espécie de exílio voluntário, transferir-se de mala e cuia para a Europa. A carreira européia do Vissungo se reinicia em julho de 1990, com a ida da dupla para Modena, Itália, afim de cumprir um contato para uma tournée de um espetáculo de música negra e dança afro-brasileira tradicional, cuja renda seria, em parte, revertida para a vinda do restante da banda. Artisticamente muito bem sucedida, a tournée pelo norte da Itália - Modena, Bologna, Reggio Emília, Corregio, Carpi, Ímola, etc.- área na qual as tropas brasileiras combateram na 2a Guerra Mundial (o soldado José Cyrilo, pai dos irmãos Espírito Santo, entre elas), infelizmente, não teve uma renda suficiente para bancar o sonhado resgate dos membros da banda que ficaram no Brasil. Transferindo-se para Viena, Áustria, após os quatro meses em que durou a experiência italiana, o Vissungo foi enfim recomposto com músicos locais, entre os quais o excelente guitarrista vienense Claudius Jelinek, o baixista uruguaio Pablo Solanas, o percussionista senegalês Jimmy Wolof e os brasileiros Ita Moreno (violonista) e Tatá Cavalcanti (baterista).

-----------------Vissungo afro beat

Durando cerca de três anos, a carreira européia do Vissungo, representou, como o fim de um ciclo, a realização do sonho original contido na proposta inicial do grupo, por uma música negra brasileira moderna, na qual não se abrisse mão daquelas raízes africanas mais profundas, proposta tão penosamente buscada no Brasil e enfim encontrada viva e pujante no mercado musical europeu, no qual o conceito mais moderno de música popular é aquele realizado pela maravilhosa fusão de ritmos africanos das colônias (Guiné, Senegal, Nigéria, Gana, etc.), com a música negra norte americana (Soul, Funk), conceito fundado pelo grande músico nigeriano Fela Kuti, e conhecido na África e na Europa genericamente como ‘Afro-beat’.

O resultado deste feliz, embora tardio, encontro do Grupo Vissungo com os sons africanos que lhe eram similares ou irmãos, pode ser felizmente mostrado em seu retorno definitivo ao Brasil em 5 de Novembro de 1996, num inesquecível espetáculo na Sala Cecília Meirelles, em comemoração ao mês de Zumbi de Palmares. Para a nova formação do grupo, os dois únicos remanescentes da formação original (os irmãos Antônio e Lula) recorreram a uma incrível fonte musical, de existência inpensável na década anterior: Um núcleo de jovens músicos negros, com experiência em música pop adquirida em sua dedicação militante à reggae Music, congregados no Centro Cultural Donana, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, inegável foco da posterior ascenção do reggae no mercado pop brasileiro, com o KMD5 (banda depois rebatizada como Negril) e o Cidade Negra (antes liderada pelo polêmico Ras Bernardo). Desta fonte maravilhosa e revigorante, foram arregimentados Lauro 'Biko' Farias, baixo (logo em seguida 'roubado' pelo O Rappa), Reinaldo Amancio (logo em seguida integrando o 'Cabeça de Nego'), além do fabuloso batera Jahir Soares, decano do reggae raiz carioca até os dias de hoje. Integraram também o Vissungo, neste seu último espetáculo, Welington Coelho (depois do Farofa Carioca) e Paulão Menezes (ainda hoje percussionista da banda de Bia Bedran) Ali, diante de uma platéia entre surpresa e extasiada com a diferença gritante entre o som que o grupo trouxe da Europa e os sons da comedida música negra em voga no Brasil (onde o Reggae começava a pontificar), o Grupo Vissungo decidiu se recolher a sua significância, sabe-se lá até quando.

----------------Esta matéria, sendo sobre música, deveria conter um arquivo de áudio com o som do Vissungo.

Falha da época: Além do LP do disco com a trilha sonora do filme Chico Rey (talvez ainda não lançado em CD) e de faixas há pouco tempo inseridas num remix (este sim, em CD) do disco de Clementina de Jesus ‘Canto dos Escravos’, existe muito material gravado pelo Grupo Vissungo, espalhado por aí, em mídias diversas (a maioria deste material, está em suportes considerados hoje obsoletos, tais como fitas K7 e fitas VHS). O acervo do grupo (centenas de horas de registros de áudio em fitas K7, negativos P&B e slides fotográficos) fruto de suas pesquisas de campo, até hoje razoavelmente conservado, contém também interessantes registros de shows e ensaios, no Brasil e no exterior, aguardando digitalização, missão sobre a qual, alguém terá que se debruçar um dia. Legítimo produto artístico da inesquecível década de 70 do século 20, o Grupo Vissungo pode ser visto hoje, distanciadamente, como uma espécie de símbolo natural da privação de acesso ao mercado – e aos meios de produção e registro mais elementares - sofrida por determinados artistas e grupos musicais brasileiros, antes do formidável advento desta atordoante revolução das mídias modernas, e seus meios e suportes democratizados (ou banalizados) como nunca o foram na história. Empávido, umas vezes aos trancos e barrancos, outras gloriosamente, o Vissungo durou 20 anos. Sobreviveu muito bem aos desafios de seu tempo. Na verdade, tendo sido de algum modo registrado, gravado, nem mesmo pode ser declarado clinicamente morto, ainda.Como vinho envelhecido, ele está ainda adormecido numa adega destas da vida, num quintal destes do mundo onde, brasa dormida, até hoje pulsam suas emoções, passíveis de serem digitalizadas, eternizadas, se tornando, portanto, imortais.


Eu pelo menos, um dos Espírito Santo desta história, continuo vivinho da Silva.

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'A véia preta tem cinco fio

os cinco fio do mesmo pai

na meia noiteo pai tá sumido

véia pregunta pros cinco fio:

menino preto, cadê teu pai?

'Jongo do Vissungo

Spirito Santo


Setembro 2007